Grupo defende volta do Planejamento

Entrevista originalmente publicada no Valor Econômico

Antonio Corrêa de Lacerda diz que retomada do ministério deve refletir outra visão do papel do Estado

Por Lucianne Carneiro — Do Rio

Antonio Corrêa de Lacerda: “Um país entre os dez maiores Produto Interno Bruto do mundo não pode ter 33 milhões de pessoas passando fome” — Foto: Wenderson Araujo/Valor

Antonio Corrêa de Lacerda: “Um país entre os dez maiores Produto Interno Bruto do mundo não pode ter 33 milhões de pessoas passando fome” — Foto: Wenderson Araujo/Valor

O Comitê de Planejamento, Orçamento e Gestão deve entregar hoje à coordenação da equipe de transição o primeiro diagnóstico sobre as discussões realizadas nos últimos dias para uma nova organização dos ministérios da área de economia, com foco no Ministério do Planejamento. A informação é do economista Antonio Corrêa de Lacerda, integrante do grupo que é professor da PUC-SP há mais de 30 anos e consultor de empresas.

O comitê defende a recriação dos ministérios de Planejamento e de Indústria e Comércio, numa estrutura que possa refletir uma outra visão sobre o papel do Estado na economia em vigor no país desde 2016. Para o economista, o agrupamento de várias funções no Ministério da Economia deixou o órgão com menos articulação com o setor privado.

Embora o grupo não trate diretamente da PEC da Transição, Lacerda afirma que a proposta coloca às claras uma realidade desde 2019: o não cumprimento do teto fiscal. “O modelo fiscal vigente sucumbiu há tempos”. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: Como vai o trabalho do Comitê de Planejamento, Orçamento e Gestão?

Antonio Corrêa de Lacerda: Nosso principal desafio de curto prazo é repensar o Ministério do Planejamento. Está claro que há uma outra visão sobre o papel do Estado em relação ao governo atual. O setor privado tem papel importante, mas há funções do Estado que são imprescindíveis, como de coordenação, de planejamento, de ação, de supervisão. O Planejamento inserido nessa visão. Existe uma certa ansiedade sobre um nome da Economia. Mas não haverá nome. Essa é minha visão. O governo atual não apresentou programa econômico e ainda denominou o que chamou de “posto de combustível”, que concentra todas as funções [referência ao atual ministro da Economia, Paulo Guedes, que era chamado pelo presidente Jair Bolsonaro de “Posto Ipiranga”, porque teria respostas para todos os problemas econômicos]. O governo atual concentrou todas as funções dos antigos ministérios [Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio], num único ministério. Isso num primeiro momento pode animar alguns, adeptos do Estado mínimo, mas não funciona.

Valor: Por quê?

Lacerda: O Ministério [da Economia] perdeu interlocução com os agentes econômicos, os empresários, os trabalhadores, os empreendedores, os consumidores, com a sociedade. Isso porque não funciona acumular tantas funções. Não é tarefa de uma pessoa. Minha visão é que não haverá “um posto de combustível”. Primeiro porque a política econômica não será do nomeado, é do governo. E ela está muito clara, embora se diga que falta plano. O plano do governo foi amplamente debatido e elaborado, no que se refere a suas diretrizes gerais. Não haverá um ministro da Economia, mas sim ministérios integrados. Além dos três que eu citei – Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio -, você tem outros ministérios que dialogam com eles: os ministérios de Ciência e Tecnologia, de Meio Ambiente e o de Infraestrutura. Esses três últimos dialogam com os três primeiros no sentido de um programa econômico pró-desenvolvimento. Assim como não é possível replicar o passado, porque os desafios são novos, nós temos que repensar a estrutura dos ministérios da área econômica para atender aos objetivos de desenvolvimento e da reindustrialização do país. Pensar em rearticular a estrutura do Ministério do Planejamento para dialogar com os demais ministérios e fazer frente ao desafio de colocar o país de novo na rota do crescimento.

Valor: E que desafios são esses?

Lacerda: Temos hoje um cenário pós-globalização, pós-pandemia e em meio à guerra na Ucrânia. É claro que não se pode desprezar as boas experiências passadas, mas não é simplesmente replicar a estrutura que tinha no passado. O primeiro desafio é tirar o país do mapa da fome. Um país entre os dez maiores Produto Interno Bruto do mundo não pode ter 33 milhões de pessoas passando fome nem metade da população em situação de insegurança alimentar. Não pode ter um quarto da sua população economicamente ativa [24 milhões de pessoas] fora do mercado de trabalho, considerando desempregados, desalentados e subocupados. O Brasil não pode prescindir de uma indústria inovadora, que gere valor agregado, nem continuar semiestagnado, sem ampliar seu PIB per capita. E o país não pode ter uma taxa de investimento tão baixa, insuficiente para repor sequer os investimentos já realizados. Temos que ampliar os investimentos para a sustentabilidade clara do crescimento a médio e longo prazos.

Valor: Como o senhor vê a PEC da Transição?

Lacerda: A PEC da Transição coloca às claras uma questão que tem sido recorrente no Brasil. Desde 2019 não se cumpre o teto de gastos. Ao longo de quatro anos, o gasto fora do teto foi da ordem de R$ 795 bilhões. É curioso que cause tanta celeuma quando a PEC da Transição pede espaço próximo a R$ 200 bilhões. Minha visão é que a PEC é absolutamente necessária, tendo em vista a falência do modelo da Emenda Constitucional 95 [teto dos gastos]. Fui crítico já em 2016. Era um descalabro definir uma regra fiscal que congelava os gastos públicos por 20 anos, sem levar em conta os ciclos econômicos, o papel do Estado durante crises e calamidades, o crescimento populacional… Na verdade, o modelo fiscal vigente já sucumbiu há tempos. O governo eleito, juntamente com o novo Congresso, terá que discutir uma nova regra fiscal para conduzir esse processo.

Valor: Quando o comitê vai entregar seu trabalho?

Lacerda: Temos um relatório preliminar para a coordenação da transição [Geraldo Alckmin, Aloizio Mercadante e Gleisi Hoffmann] que deve ser entregue nesta quarta-feira [hoje]. A data prevista para o relatório final é o dia 8 de dezembro. Esse primeiro relatório será uma comparação entre a estrutura anterior do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a estrutura atual e a nova estrutura, que é a nossa proposta. O que posso adiantar é que objetivo é resgatar a função de planejamento, no sentido amplo, nessa nova configuração dos ministérios, nessa nova estrutura de condução da economia. Só enfatizando. A visão predominante desde 2016, com algumas variantes, é de que a função do Ministério da Economia é resgatar o que chamam de “confiança” e o setor privado se incumbe do resto. Na nossa visão isso não basta. Embora o setor privado seja importante, sem uma articulação do Estado não resolve sozinho. É preciso uma combinação de ações do Estado, por meio de investimentos, Parcerias Público-Privadas (PPPs) e políticas públicas para fomentar a reindustrialização, os investimentos e as atividades que dão sustentação ao crescimento. É um modelo que prevê uma atuação mais forte do Estado.

Valor: Que novo papel de Estado será esse?

Lacerda: O Estado terá um papel articulador, coordenador e planejador, a exemplo das boas práticas internacionais. Estados Unidos, Alemanha, Coreia do Sul e China. Cada um desses países tem sua estrutura. Mas o que têm em comum é uma atuação do Estado junto com a iniciativa privada em prol de atender aos desafios que são impostos por essa nova fase. Desafios como transição energética, da transformação digital, da indústria 4.0, da nanotecnologia, da internet das coisas… São grandes players internacionais, com características diferentes, mas com grande articulação do Estado com a iniciativa privada para viabilizar as atividades que dão sustentação ao crescimento.

Valor: Nesse cenário, haverá recursos para investimento público?

Lacerda: Não discutimos isso, já que o grupo está focado na reorganização do ministério [do Planejamento]. Mas é um tema que há muitos anos me preocupa. Houve uma atrofia do investimento público nos últimos anos. Primeiro porque não é uma prioridade dos governos pós-2016. Segundo porque a própria configuração fiscal, que é uma das falhas da lei do teto fiscal, comprime o investimento. Diante da pressão com os gastos correntes, o Executivo não tem obrigação de investimentos e comprime esses investimentos. Prova disso é que estamos no menor nível de investimentos da nossa história. Temos baixo dinamismo no setor privado em geral. Precisamos resgatar a capacidade de investimento público e criar ambiente favorável ao investimento privado. Numa inspiração keynesiana [do economista John Maynard Keynes], o que move o investimento privado é a expectativa de demanda e a expectativa de rentabilidade marginal do capital, ou seja, o lucro. Então é preciso criar o ambiente favorável para que isso ocorra.

Valor: O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin falou em uma regra fiscal que combine teto de gastos, evolução de dívida pública e resultado primário. Como seria isso?

Lacerda: É uma discussão importantíssima que o governo já escalou para o início do ano que vem porque tem que envolver o Parlamento. O novo arcabouço fiscal poderá passar por algumas dessas nuances. Minha opinião pessoal é que é preciso sair das armadilhas presentes na Emenda Constitucional 95. Quais são elas? O limite à capacidade de atuação do Estado, como em situações de calamidade ou quando é necessária uma política contracíclica. A emenda também não atende às necessidades demandadas pelo crescimento populacional, ainda mais em um país com as nossas desigualdades. E além de tudo tem comprimido os investimentos. O novo arcabouço fiscal não pode replicar essas restrições [do teto fiscal]. A partir daí, há várias configurações fiscais a serem debatidas. Lembro que, nos dois mandatos do governo Lula, a única regra fiscal foi a geração de superávit primário [resultado sem incluir despesas com juros], não havia teto de gastos. E funcionou bem. Digo isso porque não é obrigação ter teto fiscal, é algo aberto, em discussão. Todos os países têm princípios fiscais. E isso não impede que eles sejam deficitários e endividados. Isso quer dizer que pode gastar à vontade? Não. Mas é que as funções de Estado não cabem no equilíbrio fiscal de curto prazo. E é preciso perseguir a sustentabilidade fiscal de médio e longo prazos.

Valor: O senhor quer dizer que é possível ter responsabilidade fiscal sem teto de gastos?

Lacerda: Isso é possível, plenamente. Pode ser um dos caminhos de regra fiscal, até porque já funcionou na prática. Isso precisa ser analisado e debatido.