Guerra na Ucrânia demonstra que neoliberalismo nunca desejou mundo harmônico

Guerra marca o fim do terraplanismo econômico

Por Rubens R. Sawaya

Foi nos anos 1990 que a ideologia da globalização ganhou seus propagandistas mais ferrenhos, na ânsia de demonstrar que o mundo agora se tornava um só. O jornalista do New York Times, Thomas L. Friedman, com seu O mundo é plano (2005), foi best-seller. O editor-chefe do The Economist, John Micklethwait, ficou famoso com seu livro-propaganda A Future Perfect: the Challenge and Promise of Globalization (escrito em conjunto como Adrian Wooldridge) publicado em 2000.

Advogavam que a liberdade individual seria a primazia desse novo mundo, sem fronteiras, sem controle centralizado (sem Estado opressor), apenas controlado pela lógica do mercado livre, constituído por indivíduos livres que, agora, teriam a oportunidade de mostrar seu talento pessoal, em qualquer rincão do planeta. A produção poderia se espalhar livremente por todas as partes. Este “novo mundo” conjugava-se com a ideologia do empreendedorismo, hoje muito em moda no neoliberalismo, do Desenvolvimento como Liberdade, de Amartya Sen, de 1999, baseada no individualismo.

Sim, o “terraplanismo” econômico nasceu antes do morfológico. E veio muito bem acompanhado do “novo consenso macroeconômico” (anos 1970-80), que servia de justificativa, de aparência técnica e formal, para liberalizar os fluxos comerciais e financeiros, para desmontar os Estados-nacionais pela privatização de tudo, como ocorreu no Brasil.

O objetivo era aplainar o terreno para que florescesse o ímpeto empreendedor dos indivíduos nos recônditos do planeta.  Um mundo harmônico, sem guerras e sem fronteiras. O neoliberalismo, como política civilizatória (democracia e liberdade) Norte-Atlântica (Estados Unidos e Europa), poderia agora, com o mundo plano, escorrer para todos os cantos do planeta.

Com o fim do comunismo e com as novas tecnologias da informação (internet), todos poderiam participar da festa como indivíduos iguais. “Agora que a guerra fria terminou, o sistema de mercado está se tornando universal” (Micklethwait & Wooldridge, 2000).

Tão embriagados pela própria ideologia, os terraplanistas foram pegos de surpresa pela crise mundial de 2008, que colocou em xeque a ideologia neoliberal na economia e, agora com a guerra, cai definitivamente a máscara que encobria o jogo de poder Norte-Atlântico.

Aparece sua verdadeira face como guerra pela hegemonia e controle do mundo, o que a globalização sempre foi.  Deixa claro que o liberalismo sempre foi, não a liberdade de cada indivíduo decidir seu destino, mas a abertura comercial e financeira para as grandes corporações se reposicionarem em seu controle sobre o mundo.

Iludiram-se de que haviam enganado os russos quando quase destruíram o país com políticas neoliberais depois da queda do Muro de Berlim.

Hoje, 20 anos depois, está claro que o projeto neoliberal da globalização nunca entregou o que prometeu. Sob o mote de levar liberdade e democracia para os “países atrasados” (não europeus/norte-americanos), governos foram derrubados, países foram invadidos, revoluções “coloridas” deixaram países em ruínas (Síria, Líbia etc.), como bem mostra Moniz Bandeira em seu A Segunda Guerra Fria, de 2013.

Em termos econômicos, elevou a desigualdade e provocou a desindustrialização em países importantes, inclusive naqueles países onde a ideologia foi gestada.

Hoje a guerra demonstra claramente que o mundo harmônico nunca passou de ilusão e que se tratou do movimento das grandes corporações em seu processo de expansão e controle sobre espaços relevantes no mundo, sobre matérias-primas e mercados, sobre processos de produção cada vez mais monopolizados e oligopolizados, espalhados em regiões conforme suas estratégias.

Só a China, ao fazer tudo ao contrário, aproveitou-se do véu ideológico que inebriou os próprios governos do eixo Norte-Atlântico e se tornou potência ameaçadora. Desenvolveu uma estratégia em parceria com as próprias grandes corporações do sistema Norte-Atlântico que saíram pelo mundo a partir da ideologia globalizante.

A estratégia chinesa é tão bem montada que engana Kissinger, que não percebe nada do que está sendo gestado, como fica claro em seu livro Sobre a China de 2011.

No Brasil, além da profunda desindustrialização promovida pelo mergulho na onda liberalizante, abrimos mão de recursos estratégicos para o funcionamento da economia.

Vendemos a Petrobras para o capital estrangeiro, que fechou refinarias aqui para importar derivados de  refinarias no exterior.

Também estamos em vias de abrir mão do recurso mais estratégico, a energia elétrica, pela privatização da Eletrobrás. E pagaremos energia elétrica em dólares (como a gasolina), moeda que as corporações estrangeiras querem e com a qual calculam seus lucros sobre o investimento.

Entregamos setores estratégicos que estão na base de nossos custos e produtividade. Perdemos o setor petroquímico ligado à Petrobras, criado a duras penas, e que nos permitia pelo menos produzir parte dos fertilizantes nitrogenados que ora importamos da Rússia, bem como as matérias-primas fundamentais (plásticos e resinas) para o que resta da indústria interna.

Assim, subordinamos nossa atividade econômica à lógica das grandes corporações transnacionais e suas estratégias em seu processo de ocupação do espaço global.

Abrimos mão de recursos que garantem nossa independência ao cair na fábula do neoliberalismo, do mundo sem fronteiras, do mundo plano. Nossa crença nas “forças alocativas do mercado” destruiu nossa indústria e nos tornou primário-exportadores, como éramos no século 19, com o mesmo grau da velha dependência que nos jogava em crises conforme o respiro do mundo, sem qualquer autonomia sobre nossa própria dinâmica econômica.

A guerra tem algo positivo. É uma oportunidade para o Brasil redescobrir os problemas de como se inseriu na economia mundial.

Torna explícito que todos os países atuam no mundo de acordo com suas estratégias, de acordo com as estratégias das grandes corporações que se utilizam de seu poder político sobre cada Estado-Nação, segundo seus interesses de poder e controle.

Talvez o Brasil perceba que não é possível se desenvolver sem ter autonomia, exportando soja e minério de ferro, commodities facilmente substituíveis e de baixo valor agregado, hoje controladas internacionalmente por grandes traders transnacionais.

No capitalismo, o mundo não é um mercado cooperativo, mas uma guerra por espaço e controle, como sempre foi.

Rubens R. Sawaya é professor do Departamento de Economia e da pós-graduação em Economia Política da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e autor de Subordinated Development, transnational capital in the process of accumulation of Latin America and Brazil, Brill/Hymarket, 2018-19.

Publicado originalmente no veículo Holofote.