Artigo – A reforma tributária ideal

  • 23 de dezembro de 2020
  • Artigo

Por Paulo Dantas da Costa – Economista, conselheiro do Cofecon, foi presidente da autarquia em 2014 e 2015.

(Artigo originalmente publicado na 38ª edição da revista Economistas)

 

O assunto reforma tributária é muito mal discutido no Brasil, num contexto no qual, até pouco tempo atrás, a mídia se encarregou da condução do tema, basicamente para alardear perante a sociedade aspectos que não condizem com a realidade, como a posição do Brasil no ranking das maiores cargas tributárias do mundo ou o grau que indica o nível de incidência dos tributos nos preços de alguns produtos previamente escolhidos.

            Na realidade, o modelo tributário brasileiro se caracteriza por marcante deformação em razão da forte concentração de tributos indiretos sobre bens e serviços, em detrimento da tributação direta sobre as altas rendas e sobre o estoque de riquezas, o que torna o modelo marcadamente regressivo ou injusto, como adiante exposto.

Para fazer face ao conjunto de desinformações publicadas, a Receita Federal, por meio dos seus relatórios anuais, bem como a ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil e a FENAFISCO – Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital, com as suas publicações, estão prestando qualificado serviço à população no tocante ao alinhamento das informações técnicas relacionadas com tão importante assunto, de evidente interesse da sociedade. Vale lembrar que as entidades, como as próprias denominações indicam, são integradas por técnicos que atuam na área tributária brasileira, ou, de outra forma, “técnicos do ramo”, com todas as qualificações para discussão do assunto.

            Desde 2017, ANFIP e FENAFISCO vêm publicando qualificado material sobre o assunto, num movimento inicialmente denominado de Reforma Tributária Solidária: Menos Desigualdade, Mais Brasil. Já em 2018 foi publicado A Reforma Tributária Necessária – Justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tributação brasileira, e neste 2020 foi apresentado o trabalho Tributar os Super-Ricos para Reconstruir o País.

EVOLUÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA

            O volume de tributos recolhidos no Brasil não se alterou significativamente no decorrer dos últimos anos. Em 2002, a carga tributária, incluídas as três esferas de governo, representava 32,09% do PIB, ficando em 2018 no percentual de 33,26%, dezesseis anos depois, ou, 1,17% de um dado para o outro. Na série 2002/2018, o dado mais expressivo ocorreu em 2007, na ordem de 33,64% do PIB (Fonte: Receita Federal/CETAD, Carga Tributária no Brasil/2018).

 

A CARGA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA NO CENÁRIO MUNDIAL

            É corriqueira a citação de que a carga tributária brasileira é uma das maiores do mundo (às vezes chega-se a afirmar ser a maior), circunstância que está bem distante da realidade, como se constata pela divulgação processada pela OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico que relacionou parte dos 38 Estados Internacionais que dela fazem parte, figurando o Brasil na 24ª posição, registrando que o país está incluído na estatística, mesmo não fazendo parte daquela Organização. (Fonte: idem).

            No ano de 2017, as cinco maiores cargas tributárias do mundo foram as da França (46,2%), Dinamarca (46%), Bélgica (44,6%), Suécia (44,0%) e Finlândia (43,3%), na comparação com o PIB. A carga tributária brasileira em 2017 foi de 32,3%. (Fonte: idem).

            Chama a atenção o fato de que dos 33 países relacionados pela OCDE, dez deles estão concentrados na estreita faixa que vai de 32% a 34,9%, sendo a média dos países da própria OCDE de 34,2%, o que em princípio está a indicar a tendência de um nível ideal em torno de 1/3 do PIB a ser destinado internamente pelos estados internacionais para arrecadação tributária, cabendo ressaltar aquelas maiores cargas de tributos do mundo, anteriormente citadas, e a parte inferior dos dados estatísticos, onde figuram Irlanda (22,8%), Turquia (24,9%), Coreia do Sul (26,9%) e EUA (27,1%). (Fonte: idem).

 

AS RAZÕES ECONÔMICAS E SOCIAIS QUE JUSTIFICAM A INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

            O estado ou setor público desempenha papel fundamental nas questões relacionadas com a tributação, até porque é sempre o sujeito ativo nas relações com os contribuintes, os sujeitos passivos.

            O Estado se origina da sociedade; por ela foi criado para o desempenho de papéis especiais em favor da própria sociedade, a exemplo da segurança, justiça, promoção da liberdade, saúde, educação, desenvolvimento, conforme constam dispostos na nossa Constituição Federal (CF), inclusive as delegações outorgadas à União, aos Estados e aos Municípios para aplicação do instrumental tributário (artigos 145 e seguintes da CF). Os serviços prestados pelo Estado à sociedade são custeados principalmente com os recursos originados da arrecadação tributária.

            Nesse contexto, carece de exame um aspecto de caráter social atinente a rejeição da maior parte das pessoas às práticas tributárias: no geral, os indivíduos entendem como um enorme sacrifício o cumprimento das suas obrigações tributárias.

            A propósito disso, Marc Morgan, em Perspectivas da Reforma Tributária no Brasil (A Reforma Tributária Necessária, ANFIP, Fenafisco, 2018, p. 119) afirma:

“Tributação é assunto frequentemente encoberto mais por emoções que por reflexão racional, baseadas em pontos de julgamento com vagas referências. As pessoas são inclinadas a generalizar a partir da própria situação pessoal, sem considerar a sociedade como um todo. Compreender isso é crucial para atingirmos algum senso de equidade”.

 

            Cabe ressaltar, com a maior ênfase, que nenhuma pessoa é capaz de acumular vultosa riqueza isoladamente, sem relação com outras pessoas. Isso é impossível! A sociedade enriquece os seus eleitos. Entretanto, para tal fim, é essencial que os indivíduos mantenham relações econômicas entre si, de modo a propiciar acumulações (riquezas) de uns em detrimento dos outros, mesmo que tais relações se realizem por meio de entidades ou empresas, no geral, via preços dos bens e serviços.

 

            É fundamental que os muito bem sucedidos economicamente, os ricos, enfim, entendam como indispensável o aporte de recursos junto ao Estado, por meio da tributação, sob pena de conduzir a sociedade para um descontrolado processo de concentração da riqueza. O referido aporte de recursos representa, no final das contas, a devolução de parte do que um pequeno número de pessoas acumula ou ganha nas relações econômicas que desenvolvem com as outras pessoas, num movimento que possibilita a expansão econômica.

            Não é demasiado citar que o Brasil é um dos países mais injustos do planeta do ponto de vista social, circunstância perceptível, seja pela medida indicada pelo coeficiente de Gini, seja pelo número de super-ricos ou ainda pela avaliação da fatia de renda abocanhada pelo 1% ou até do 0,1% mais rico da população. Sem a pretensão de indicar o uso do instrumental tributário para correção de tão grave deformação, o fato é que as adequadas transformações das regras tributárias podem sim contribuir para o avanço de uma sociedade mais justa.

 

SOBRE AS PROPOSTAS DE REFORMA TRIBUTÁRIA

 

            O parlamento brasileiro tomou as iniciativas para discussão de projetos destinados à formalização de uma reforma tributária. Assim é que no Senado Federal examina-se a PEC 110/2019 e na Câmara dos Deputados tramita a PEC 45/2019.

            O poder executivo também tem o seu próprio projeto, limitado inicialmente à unificação do PIS, Pasep e Cofins.

            Ambas as propostas do parlamento estão muito bem embasadas do ponto de vista técnico, especialmente a PEC 45/2019, entretanto sofrem do mesmo mal, na medida em que não tocam na mais grave deformação do Sistema Tributário Nacional, que é caracterizado por marcante regressividade, o que significa dizer que o ônus tributário é arcado mais acentuadamente pelos pobres, em detrimento do que ocorre com os ricos, os de maior capacidade contributiva, que são brandamente atingidos pelos tributos.

            Esse fenômeno acontece porque as PEC estão voltadas basicamente para a tributação indireta, cuja incidência atinge as operações econômicas que envolvem os bens e serviços, sem nenhuma possibilidade de alterar o mencionado quadro de marcante regressividade. Afinal, os que estão nas classes sociais mais baixas enfrentam um custo relativo bem maior, comparado com os que estão nas classes sociais mais altas, em termos de tributação.

            A PEC 110/2019, que tramita no Senado, tem a sua origem na Câmara dos Deputados e resulta do Substitutivo examinado na Comissão Especial da PEC 293/2004. Por meio dela seriam substituídos nove tributos por um só, o IBS, Imposto sobre Bens e Serviços, que unificaria o ICMS, ISS, IPI, PIS, Cofins, Cide, Pasep, IOF e  Salário-educação.

            Por meio da mesma PEC 110/2019, além do IBS, também seria criado um imposto seletivo, a incidir sobre produtos específicos, como petróleo e derivados, cigarros, energia elétrica e serviços de telecomunicações.

            A PEC 45/2019 também propõe a criação de um tributo com a mesma denominação, IBS, para substituição de cinco outros tributos: ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins.

            As duas Propostas prometem: a simplificação dos procedimentos tributários e consequente redução do custo das empresas, a definição do destino ou local do consumo como critério para a incidência do IBS, a redução do contencioso tributário, a vedação da concessão de benefícios fiscais, a eliminação da guerra fiscal entre Estados e a atenuação das desigualdades regionais e sociais. A PEC 45/2019 ainda admite a devolução de parcela paga pelas famílias de renda mais baixa através de mecanismos de transferência de renda, no chamado imposto de renda negativo.

            Outra promessa se mostra marcadamente vulnerável no que diz respeito à sua execução: a de que, seja uma PEC, seja a outra, a reforma tributária resultará numa excepcional expansão da atividade econômica, acompanhada de expressiva empregabilidade (assim como também foi “vendida” a garantia de muitos empregos para aprovação da Reforma Trabalhista).

            Sem desconhecer os evidentes ganhos decorrentes da simplificação dos procedimentos, o fato é que não há nenhum indicador seguro de que sejam alcançados extraordinários resultados em termos de desempenho econômico.

            A tributação indireta deve ser adotada seletivamente, de modo a não alcançar pessoas de baixa renda quando elas adquirem bens ou serviços essenciais (alimentos e medicamentos, por exemplo), ficando reservada a sua aplicação mais intensa para operações que envolvem produtos e serviços não essenciais, como os artigos de luxo, bebidas e cigarros. A tributação direta, ao contrário, é aplicada de forma mais justa, a incidir sobre a renda, mais marcadamente sobre as altas rendas, e sobre o estoque de riquezas patrimoniais, resultando em evidentes consequências econômicas ao alcançar os que efetivamente dispõem de capacidade contributiva.

Alguns dados dão conta da clara opção brasileira pela tributação indireta. No ano de 2015, 22,7% do produto da arrecadação tributária foi proveniente do imposto sobre a renda e dos tributos sobre o patrimônio, 49,7% sobre o consumo e 27,6% definidos como outros (basicamente incidências sobre a folha de pagamento). Nos países mais evoluídos economicamente – EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá – as práticas tributárias estão pautadas numa lógica bem diversa, onde a tributação direta tem mais importância. Nos Estados Unidos, por exemplo, naquele mesmo ano de 2015, a arrecadação com Imposto de Renda e sobre o patrimônio representou 59,4% do total arrecadado, 17,0% sobre o consumo e 23,6% de outros; os dados médios para os países da OCDE são, na mesma sequência, 39,6%, 32,4% e 28%. (Dados coletados em A Reforma Tributária Necessária, 2018: Anfip, Fenafico).

No Brasil, como visto, a hipótese da tributação direta tem baixo significado econômico, cabendo citar que no ano de 2015 a arrecadação com os seis tributos sobre a propriedade (Sobre Grandes Fortunas, Sobre Heranças, ITR, IPVA, IPTU e ITBI) alcançou a marca de pífio 1,45% do PIB num universo de 32,11% do PIB correspondente à carga tributária total registrada naquele ano. (Fonte: idem).

            Uma reforma tributária digna desse nome passaria por uma revisão de parte do contrato social. É essencial que os ricos e poderosos entendam/concordem que a sociedade que lhes proporcionou todas as possibilidades para acumulação de riquezas necessita que parte do fluxo financeiro dessa mesma acumulação retorne para que o gestor da referida sociedade, o Estado, por ela delegado, desenvolva políticas públicas em favor dos mais necessitados, ressaltando que esses mesmos, na maioria das vezes, é que proporcionam as acumulações econômicas em favor daqueles.

            Parece muito pobre pretender chamar de reforma tributária os projetos que contemplam apenas modificações nos tributos indiretos, diante do grave quadro social em que está situado o Brasil, desde sempre, contexto em razão do qual o instrumental tributário poderia contribuir para as soluções almejadas. Seria mais adequado denominar a iniciativa de algo como “ajustes pontuais na tributação indireta”. Nada além disso!

 

A MAIS ADEQUADA REFORMA TRIBUTÁRIA

 

            Há que se concluir que o modelo tributário brasileiro carece sim de uma profunda reforma que busque alcançar quem de fato deve arcar com o ônus tributário, os ricos e poderosos, retirando das empresas tal obrigação, que é transferida para as pessoas, via preços, sem a possibilidade da identificação das classes sociais às quais as mesmas pessoas pertencem, às vezes quando da realização de operações econômicas marcadas até por alguma perversidade social, como é o caso da cobrança de impostos nas vendas de leite, pão, arroz, feijão, açúcar e outros alimentos a integrantes de classes sociais que estão na base da pirâmide social, pelo acionamento da tributação indireta.

 

            Do lado da tributação direta, fala-se frequentemente no que deixa de ser recolhido em razão da não incidência tributária sobre os ganhos decorrentes de lucros e dividendos, mas, não é só isso! Os rentistas brasileiros também são brandamente atingidos pelo imposto de renda, para citar outro caso tão grave quanto aquele.

 

            Algumas iniciativas seriam apropriadas para transformação do quadro atual, a partir de modificações na legislação do Imposto de Renda da Pessoa Física – IRPF, de modo a retirar o arsenal de dispositivos desonerativos que nela contém, no geral em favor dos mais privilegiados da sociedade. Cabe citar que a alíquota máxima do IRPF brasileiro de 27,5% está bem abaixo da máxima praticada nos países da OCDE, que é de 41%, em média, e também abaixo do que ocorre em alguns países da América Latina, como Argentina (35%), Chile (40%) e Colômbia (33%). (Fonte: ANFIP, Fenafisco, Tributar os Super-Ricos para Reconstruir o País, Documento-Síntese, Julho/2020, p.8).

 

            O caso mais emblemático no tocante ao descuido com relação aos tributos sobre o patrimônio está situado no caso do IGF – Imposto sobre Grandes Fortunas, que foi aprovado e incluído na CF de 1988, de competência da União (artigo 153/VII), entretanto nunca posto em prática, por falta de uma lei complementar, ou até por falta de “autorização” dos potenciais contribuintes.

 

            Outro caso marcante diz respeito ao IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, de competência dos Estados e do Distrito Federal (artigo 155/III da CF), que não consegue alcançar a propriedade das aeronaves e as embarcações de luxo, que são bens indicadores de elevada capacidade econômica dos seus detentores, onde caberia, com evidente justiça, a adequada incidência tributária. No ano de 2018, a arrecadação com o IPVA alcançou 0,63% do PIB. (Fonte: Receita Federal/CETAD, Carga Tributária no Brasil/2018)

 

            O Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, o Imposto sobre Heranças, de competência dos Estados e do Distrito Federal, artigo 155,I da CF, também tem a sua arrecadação muito baixa por ter sido instituído com base numa alíquota máxima bem reduzida, de 8%, muito inferior ao padrão de tributação dos países da OCDE, que registra casos como os da Alemanha (50%), Coréia (50%), Japão (55%), França (60%), Espanha (64%) e Bélgica (80%). No ano de 2018 a arrecadação com o ITCMD registrou 0,11% do PIB. (Fontes: ANFIP, Fenafisco, Tributar os Super-Ricos para Reconstruir o País, Documento-Síntese, Julho/2020, p.20, e Receita Federal/CETAD, Carga Tributária no Brasil/2018).

 

            Estão aqui mencionados importantes passos para modernização dos tributos brasileiros. Outros mais são necessários, como a criação da Contribuição Social sobre Altas Rendas e extinção da estranha figura dos juros sobre o capital próprio (objeto do artigo 9º da Lei 9.249/95), conforme propostas da ANFIP e Fenafisco, bem como a indicação para redução dos gastos tributários, que são desonerações tributárias concedidas pelos entes tributantes, sob a forma de isenções, anistias, deduções, créditos fiscais e outros tipos de benefícios fiscais.

 

            Para o avanço na montagem da melhor reforma tributária é necessário que sejam criadas as condições legais para otimização do lançamento e da arrecadação dos tributos sobre o patrimônio e sobre a renda indicadas neste tópico (IRPF, IGF, IPVA, ITCMD), incluídos ainda o ITR, IPTU e ITBI, para, em conjunto com as indicadas modernizações nas incidências dos tributos sobre o consumo, seja produzida uma completa e qualificada reforma tributária, envolvendo, portanto, a tributação indireta e a tributação direta.

 

            A sociedade, que comanda o Estado, espera que os poderes Legislativo e Executivo tomem as melhores iniciativas.