Artigo – Inserção internacional: desnacionalização e investimento estrangeiro

Por Antonio Corrêa de Lacerda – Professor-doutor, diretor da FEA-PUCSP, doutor pelo IE/Unicamp, conselheiro e  atual vice-presidente do Cofecon, do qual foi presidente (1999),  autor, entre outros livros, de: Globalização e Investimento Estrangeiro no Brasil (Saraiva, 2ª. Ed, 2004), Desnacionalização (Contexto, 2000, um dos ganhadores do Prêmio Jabuti, na área) e  “Economia Brasileira” (Saraiva, 6ª. Edição, 2018). Site www.aclacerda.com

(*Artigo publicado na Revista Economistas nº 33)

 

A crise brasileira persiste. Falta-nos um projeto mais abrangente de desenvolvimento, no qual a questão da inserção internacional esteja contemplada. Uma das faces mais relevantes da atual crise brasileira é o impacto do problema da indústria, dada a sua capilaridade e interrelação com os demais macrossetores e ainda o seu relevante papel para a geração de valor agregado, emprego, renda, tecnologia e arrecadação de tributos.

A crise no setor industrial brasileiro é estrutural e persiste há anos. O nível médio atual da produção industrial atual é semelhante ao de dez anos atrás, quando o Brasil começava a superar os impactos dos efeitos da crise subprime norteamericana. Vários fatores estruturais têm impactado negativamente a indústria brasileira, que vive os efeitos da desindustrialização precoce. Crédito caro e escasso, política cambial errática e longo período de valorização do real, mais as agruras do “custo Brasil”, se encarregaram de agravar o aprofundamento da crise. Condições macroeconômicas desfavoráveis e políticas industriais titubeantes tampouco reverteram a situação.

O resultado foi o avanço das importações, especialmente advindas da China, substituindo a produção local. As exportações de industrializados também prejudicadas pelos mesmos fatores mencionados perderam espaço, ou estagnaram e um mercado internacional hipercompetitivo. A balança comercial brasileira segue superavitária, influenciada pelo excelente desempenho dos complexos agro, mineral e de carnes. Mas a questão aqui não é “ou”, mas, “e”. O Brasil é um dos poucos países que pode manter ampla pauta de produção e exportação nos setores em que já mantem posição de destaque, sem, no entanto, em detrimento da indústria e serviços sofisticados.

Os industriais brasileiros, aqueles que não atuaram em setores diretamente ligados a commodities, ou de setores oligopolizados, foram “empurrados”, por sobrevivência, ou senso de oportunidade, para a importação e o rentismo.

Mais recentemente, entre 2015, 2016 e os anos seguintes a crise brasileira trouxe um fator conjuntural que impactou fortemente a indústria brasileira. Desde então a “recuperação” segue adiada, como denotam os dados já mencionados.

Os desafios que se apresentam para o futuro, portanto, envolvem não apenas a correção dos graves desequilíbrios sistêmicos brasileiros e seus impactos na indústria, mas a definição e implementação e politicas de competitividade (politicas: industrial, comercial e de inovação) nos moldes das melhores práticas internacionais e locais. Seria equivocado apostar que apenas as “forças do mercado” e a “fé” na abertura comercial poderiam por si só nos recolocar no caminho do desenvolvimento. Não foi assim nas melhores experiências internacionais conhecidas.

Os pressupostos da chamada Indústria 4.0 esta a nos exigir estratégias ousadas, mas, igualmente, seria um equivoco desconsiderar a experiência da indústria tradicional e resiliente no Brasil.  Isso não vai se dar, somente pelas “forças do mercado”. Uma boa estratégia pressupõe o diagnóstico  adequado. Do contrário, avaliações equivocados nos levarão, inexoravelmente, a falsas soluções.

Os riscos da desnacionalização

A inserção externa deve ser abordada sob os mais variados aspectos, como o comercial, produtivo, tecnológico, soberania, dentre outros. É nesse contexto que a questão da desnacionalização de empresas brasileiras, públicas e privadas deve ser avaliado. O tema é bastante polêmico e não sem razão. A aquisição de empresas brasileiras por estrangeiros, a par de qualquer traço de xenofobia, representa, inquestionavelmente, a transferência de centros de decisão para o exterior. Trata-se de uma mudança que representa impactos significativos para a estratégia nacional de desenvolvimento, implicando questões como, cadeia de fornecedores, nível de tecnologia e  emprego, grau de concorrência, balanço de pagamentos, etc.

A visão liberal de mercado se mostra favorável aos ingressos de investimentos diretos estrangeiros, levando em conta as suas externalidades. Já se apurou que, no entanto, isso não ocorre de forma automática, dependendo do ambiente sistêmico, das políticas de competitividade, além de uma necessária negociação com as empresas, no âmbito das cadeias globais de valor e o papel a ser representado pela empresa sediada no país hospedeiro. Daí a importância de um maior  conhecimento do tema, assim como a formulação de estratégia, tendo em vista os vários aspectos envolvidos na questão.

A internacionalização das empresas foi intensificada especialmente a partir da década de 1990, impulsionada pela globalização financeira que potencializou a capacidade de expansão além-fronteira das empresas transnacionais. Vários países, mais recentemente, com destaque para a China têm ampliado a atividades no exterior das suas empresas com vista a autossuficiência energética, hídrica e alimentícia.

Nesse sentido, como exemplo, a aquisição por parte de uma empresa estrangeira de , uma distribuidora local de energia, para além dos aspectos de segurança e defesa envolvidos, há a questão da cadeia de fornecedores envolvida. Muitas vezes há um objetivo claro do investidor de ampliar o espaço das suas empresas no fornecimento de equipamentos e serviços especializados. Assim, há impactos potenciais significativos não apenas na política de investimentos, mas, na cadeia de fornecedores e, portanto, de emprego.

Sob o ponto de vista concorrencial nos casos em que a desnacionalização envolve uma privatização, concessão, ou ainda uma Parceria Público Privada (PPP), a questão adicional é quanto as consequências da transformação de um monopólio, ou oligopólio público, em privado. Embora o Estado não precise ser necessariamente o operador em áreas como energia, saneamento, transportes, dentre outras, esse não pode se eximir da tarefa de regulação, coordenação e fiscalização das atividades. O risco é deixar vulneráveis as empresas, os cidadãos e consumidores, no que toca à fixação dos preços e tarifas cobradas, das contrapartidas de realização de investimentos, definição de padrões tecnológicos, manutenção e geração de postos de trabalho, etc

Todas essas questões não são necessariamente novas. Nos anos 1990 houve um processo representativo tanto de desnacionalização de empresas brasileiras, em muitos casos envolvendo a privatização. No entanto, pouco se debruçou sobre uma avaliação dos aspectos positivos e negativos do processo, apesar da relevância do tema e das experiências passadas, nacionais e internacionais.

Há o ainda aspecto das contas externas. Todo ingresso de capital estrangeiro tem como contrapartida a remuneração aos seus acionistas. Grande parte dos ingressos está relacionada não a novos projetos, mas, a transferências patrimoniais. O agravante é que em muitos casos se dá em setores não exportadores, ou seja, que não gerarão receitas em dólares, mas e demandarão remessas futuras de pagamento de lucros e dividendos, além de outras despesas, nessa moeda.

Daí a importância da análise e discussão da desnacionalização de empresas privadas e públicas no Brasil, que precisa ser melhor compreendida e analisada no âmbito do desenvolvimento e o papel a ser exercido pelas políticas públicas.

No quesito ingressos de investimentos diretos estrangeiros (IDE), o bom desempenho brasileiro no que toca à sua atratividade chama atenção, especialmente se considerarmos que a economia não apresenta crescimento significativo há vários anos. Mas, certamente, quem toma a decisão de investir no Brasil não está considerando o desempenho de curto prazo, nem o do próximo ano, mas da próxima década. Assim, o fator de estamos dentre as dez maiores da economia mundial e o potencial de mercado equivalente, é sempre um atrativo para quem quer fazer investimentos mundo afora.

Sob o ponto de vista do balanço de transações correntes, embora importantes no curto prazo por representarem a maior fonte de financiamento do déficit em transações correntes, os novos ingressos, no entanto, não garantem a sustentabilidade intertemporal das contas externas. Isso porque mais investimentos estrangeiros na nossa economia significam mais remessas de lucros e dividendos futuros, onerando a conta de serviços e rendas do balanço de pagamentos.

Assim, é muito importante que os novos ingressos de IDE representem não apenas uma maior qualidade no que se refere à sua composição, mais greenfields, (novos empreendimentos) e não apenas transferências patrimoniais, que é o que ocorre quando estão relacionados a compra de empresas já existentes, mas que também signifiquem novos potenciais de inovação, produtividade e exportações.

É importante destacar que sob o ponto de vista dos investimentos, o IDE no mundo todo desempenha um papel apenas marginal, sendo responsável por apenas cerca de 15% da formação bruta de capital dos países. A dinâmica do investimento é mesmo dada pelo investimento doméstico, sendo o capital estrangeiro apenas complementar. No entanto, apesar dessa ressalva o IDE pode representar um papel estratégico relevante, principalmente levando em conta que representam inversões de grandes empresas globais que tem grande influencia nas inovações, nas exportações e demais atividades, podendo viabilizar a inserção do país hospedeiro às grandes cadeias de suprimento internacionais.

Essas vantagens, no entanto, não são automáticas. Elas dependem fundamentalmente de alguns aspectos relevantes dos países receptores: a competitividade sistêmica, as políticas públicas e da capacidade de negociação. Ou seja, é muito relevante para se aproveitar as vantagens potenciais do IDE contar com um ambiente competitivo, como política cambial, juros, etc, implementar políticas públicas que favoreçam a produção, a inovação e as exportações, e manter um diálogo constante dos decisores de política econômica com a alta gestão das empresas já instaladas e novos ingressantes, no sentido de viabilizar uma inserção mais ativa das empresas brasileiras nas estratégias globais de internacionalização comercial e produtiva.

Conclusões

A globalização da economia, a financeirização e quarta revolução industrial representam aspectos significativos no âmbito do desenvolvimento das economias e ressaltam o papel da inserção internacional. No entanto, como apontado, torna-se crucial destacar que o papel dinâmico dos investimentos, base para a sustentação do crescimento econômico da imensa maioria dos países, é exercido pelo investimento local, uma vez que responde, em média, por cerca de 85% do total realizado. Apesar da retórica da globalização econômica, no quesito investimento, a parcela predominante ainda é fundamentalmente doméstica !

Há outros aspectos relevantes envolvendo a questão dos investimentos diretos estrangeiros e o desenvolvimento dos países. Há externalidades relevantes, impactando o padrão de produção, comércio exterior e tecnologia dos países. Observa-se ainda uma interconexão crescente entre investimento, exportações e inovações na economia mundial. A integração às grandes cadeias produtivas globais, imprescindível para uma inserção externa ativa dos países em desenvolvimento, se dá, em grande medida, pelo papel desempenhado pelas filiais das grandes empresas globais.

Dai a importância, considerando os aspectos apontados, da estratégia de inserção externa brasileira, especialmente considerando o recente protagonismo dos investimentos chineses, com destaque para os seguintes pontos:

  • A sustentabilidade intertemporal do balanço de pagamentos. Dado o compromisso de remuneração futura dos sócios estrangeiros, em dólares, via transferências de lucros e dividendos, é necessário gerar receitas na mesma moeda. O problema é que há uma predominância dos investimentos em setores voltados para o mercado doméstico e que, portanto, não geram receitas em dólares;
  • Desnacionalizar a gestão e controle de empresas locais significa mudar o seu centro de decisão para o exterior, o que diminui o grau de influência local. Isso é crítico, especialmente quando se trata de setores estratégicos para o desenvolvimento local. Daí a relevância de fortalecer a regulação, controle, fiscalização e supervisão destas atividades, sob o risco de se criar restrições ao desempenho de toda a economia;
  • Estimular atividades que, para além da produção e exportação de commodities promovam uma maior agregação de valor, de forma a viabilizar geração de  renda, tributos, empregos e tecnologia.
  • Também se torna fundamental estabelecer um projeto de desenvolvimento que explicite o papel desejado dos investimentos; que setores e necessidades devam ser priorizados e quais as politicas para atraí-los, mantê-los e garantir maior comprometimento com os objetivos locais.