Como o Brasil almeja pagar as suas dívidas sociais, ambientais… e financeiras?

Por André Doneux, Doutor em Filosofia pela USP e Diretor de Comunicação do IFFD. Artigo originalmente publicado no Estadão. 

Nos dois meses finais de 2022, durante a transição para o Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tramitou no Congresso Nacional a chamada “PEC da Transição”. O texto promulgado na penúltima semana do ano deu origem à Emenda Constitucional (EC) 126. Há evidente caráter de excepcionalidade na tramitação de uma PEC no breve período entre a divulgação do resultado eleitoral e a posse de uma nova administração do Poder Executivo. A aprovação da “PEC da Transição” reflete o reconhecimento, por parte do gabinete de transição e do Congresso Nacional, da insuficiência de dotações orçamentárias em importantes rubricas no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) enviado pelo governo Bolsonaro.

A aprovação emergencial de uma PEC permitindo tal ampliação das despesas inicialmente previstas no PLOA 2023 decorre do limite imposto pelo “Novo Regime Fiscal” inscrito na Constituição Federal pela EC 95, de 2016. Como se sabe, a EC 95 instituiu a regra fiscal conhecida como “teto de gastos”, a qual impede aumentos reais dos gastos primários do governo central por um período de 20 anos. A tramitação da PEC da Transição foi a mais excepcional, porém, a EC 126 não é a única alteração no texto constitucional ocorrida em função do teto de gastos. Tais autorizações para aumentos de gastos via PECs passaram a ser conhecidos como “furos no teto de gastos”.

Nos últimos anos, diversos “furos” foram realizados, por diferentes motivações. Destaque-se: a EC 102 de 2019 que estabelece a repartição da cessão onerosa do pré-sal; a EC 106 de 2020 criando o “Orçamento de Guerra”; a EC 109 de 2021 chamada de “PEC Emergencial” por permitir o pagamento dos auxílios; as Emendas Constitucionais 113 e 114, conhecidas como “PEC do Calote”, pois entre outros efeitos postergaram o pagamento de precatórios da União; e a EC 123 de 2022 que reconhece Estado de Emergência para justificar aumentos de gastos e criação de subsídios às vésperas de uma eleição.

Tantos “furos” e a necessidade de aprovação de tantas PECs são demonstrações evidentes do caráter insustentável do regime fiscal baseado no teto de gastos. Tal insustentabilidade foi reconhecida na “PEC da Transição”. Da mesma maneira, o texto da EC 126 também reconhece, em seu art. 6º, a inadequação do atual regime fiscal com vistas a garantia da estabilidade macroeconômica, e a criação das condições adequadas ao crescimento socioeconômico. O referido texto determina, portanto, que:

O Presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, inclusive quanto à regra estabelecida no inciso III do caput do art. 167 da Constituição Federal“.

Observe-se que a única “condição adequada ao crescimento socioeconômico” discriminada no texto é a chamada “regra de ouro” das finanças públicas, estabelecida no referido inciso do art. 167 da Constituição Federal de 1988. Como se sabe, a regra de ouro disciplina a elaboração orçamentária no sentido de restringir operações de crédito às despesas de capital, portanto, proibindo que a fixação de despesas correntes exceda a previsão de receitas tributárias.

Respeitada tais condições e finalidades, o Presidente da República tem liberdade para enviar ao Congresso Nacional a proposta de regime fiscal sustentável que julgue a mais adequada. O art. 9º da EC 126 determina a revogação do “Novo Regime Fiscal” (o teto de gastos estabelecido com a EC 95) mediante a sanção do Projeto de Lei Complementar que estabelece o regime fiscal sustentável previsto no comentado art. 6º.

Em 30 de março de 2023, após três meses de raras informações sobre o desenho do regime fiscal sustentável compartilhadas com o público, o Ministério da Fazenda do Governo Lula anunciou as linhas gerais de sua proposta de regime fiscal sustentável. A proposta foi designada por membros do Ministério da Fazenda como “Novo Arcabouço Fiscal” (NAF). O texto o Projeto de Lei Complementar foi enviado ao Congresso Nacional em 18 de abril de 2023. O Governo aguarda que a tramitação do PLC seja rápida, e conta com o apoio dos Presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, os quais anteveem uma aprovação em pouco mais de duas semanas.

Embora conte com o apoio de lideranças políticas importantes, a comunidade de economistas brasileiros não teve, até o momento, uma avaliação consensual do NAF. Apoios e objeções se fundamentam teorias econômicas e perspectivas sobre a economia do setor público. Tais avaliações apontam resultados divergentes quanto às possibilidades e limites do Novo Arcabouço Fiscal para entregar a estabilidade macroeconômica e as condições adequadas ao crescimento socioeconômico dele exigidas.

Neste contexto, em colaboração com diversas outras entidades organizadoras, o Conselho Federal de Economia (Cofecon) é o promotor do Seminário Novo Arcabouço Fiscal: possibilidades e limites para o desenvolvimento sustentável, que terá lugar no Espaço Israel Pinheiro na Praça dos Três Poders, em Brasília, na tarde do dia 25 de abril de 2023 – a programação, os canais de transmissão e as inscrições estão disponíveis no link. O evento busca contribuir para o enriquecimento do debate público sobre este marco das finanças públicas no Brasil. A organização do seminário procurou reunir debatedores com avaliações diversas do NAF, e representantes de posições sociais distintas. Divididos em diferentes mesas, as autoridades e economistas debaterão os efeitos esperados no NAF na trajetória de receitas, gastos sociais e investimentos públicos; o impacto do NAF sobre a política monetária, e de ambas sobre a dívida pública e as taxas de juros; e, finalmente, as perspectivas do NAF quanto à promoção do desenvolvimento sustentável e democrático.

Conforme observado, a estabilidade macroeconômica e o estabelecimento das condições adequadas ao crescimento socioeconômico dependem do sucesso do Novo Arcabouço Fiscal. O Seminário promovido pelo Cofecon entende que “o crescimento socioeconômico”, além de analisar a necessidade de eventual aumento de arrecadação fiscal e contemplar o provimento de recursos para investimentos no enfrentamento dos desafios socioambientais da contemporaneidade e a estabilidade macroeconômica, compreende, a segurança no custeio, em volume adequado, dos serviços e políticas públicas essenciais à garantia dos direitos sociais reconhecidos pelo texto da Constituição Federal de 1988.