“Coopetição” entre moedas

Diversidade das criptomoedas é um grande laboratório de ensaio para as moedas do futuro

A palavra moeda tem muitos sinônimos, como bagulho, bufunfa, cascalho, cobres, dindim, gaita, grana, zinco e dinheiro, o mais usado. Tantos nomes mostram a importância que tem. É inconcebível a nossa sociedade sem ela. Seu papel informacional e eliminador de incertezas é um elemento chave no mundo de hoje. Muitos dos ganhos de eficiência na nossa sociedade são frutos da existência dela.

A moeda, assim como a língua e o direito, é uma construção social que evoluiu ao longo do tempo. Depende da base econômica, da tecnologia e do seu projeto. Deve cumprir três funções: reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento, assim como ter características como homogeneidade, durabilidade e facilidade de estocagem.

A história da moeda até 15 de agosto 1971 é de lastros diretos e indiretos em metais. Alguns países eram mais rígidos no controle e outros menos. As oscilações do câmbio eram baixas e os surtos inflacionários eram atípicos. Aquela data marca o abandono do acordo de Bretton Woods, uma ordem monetária negociada entre quase todos os países do mundo. A partir de então, a oferta de moeda ficou a cargo dos diferentes bancos centrais.

Os arranjos monetários variam. A quase totalidade dos países tem uma moeda própria, como o Iene no Japão, outros, como o Equador, usam o Dólar americano. Há países que usam duas moedas. A Argentina tem o peso como meio de pagamento, e o Dólar como reserva de valor e unidade de conta. El Salvador adota o Dólar americano e o Bitcoin. Na Europa, alguns países têm uma compartilhada, o Euro.

O Euro é uma construção de moeda que deu certo. Foi resultado de um projeto de mais de uma década de estudos e debates. O ceticismo inicial era considerável, todavia, o Euro substituiu com sucesso o Marco Alemão, o Franco Francês e as demais moedas, e já tem um papel de destaque nos fluxos financeiros globais.

O Brasil também tem duas moedas: o Real e o Real indexado. Mais da metade das aplicações e créditos no Sistema Financeiro Nacional têm seu valor ajustado diariamente, conforme a variação do CDI. Essa segunda moeda tem como vantagens evitar o uso do dólar e conferir solidez à intermediação. Todavia, fragiliza o setor não financeiro e tira potência da política monetária.

Esse quadro, relativamente estável, está mudando há uma década. O Dólar está perdendo sua dominância. O Euro e o Yuan estão ampliando sua influência. Outras moedas privadas globais como o Bitcoin estão surgindo e apontando que as construções monetárias dos países e a mundial podem ser aprimoradas.

O Bitcoin tem limitações, mas tem vantagens. É uma moeda criptográfica que surpreendeu a todos por sua natureza distribuída e imune à censura. As regras definidas em código computacional possibilitam pagamentos diretos entre pessoas no mundo inteiro, com custos baixos e sem burocracias.

As criptomoedas avançam. São centenas. Essa diversidade é um grande laboratório de ensaio para as moedas do futuro. É possível mensurar riscos, evitar os erros e aproveitar os acertos. A exclusividade das redes só beneficia seus detentores. Note-se, há séculos é sabido que as pessoas entesouram as melhores moedas em detrimento das piores. O que acontece na Argentina com o dólar, e, recentemente, o Bitcoin, ilustra o ponto.

Criptomoedas com características semelhantes às do Bitcoin têm ocupado espaços deixados pelas limitações das moedas oficiais. As criptomoedas são produto da modernidade e cruzam fronteiras, mas estão pulverizadas em inúmeros projetos distintos e têm objetivos privados, e não públicos, de bem estar.

O embate entre os universos privado e público revela bancos centrais muito focados em regular as criptomoedas e usar a tecnologia para operar depósitos à vista e em recuperar a sua capacidade de monopolizar a oferta monetária nos países por meio das moedas digitais dos bancos centrais. Entretanto, não existe nenhum princípio econômico atribui o monopólio da moeda ao banco central de cada país. Estão pouco focados em como criar uma moeda para os dias de hoje.

As experiências pretéritas de moedas internacionais têm a ensinar. O DES – Direito Especial de Saque, do Fundo Monetário Internacional, foi uma que não decolou. A Libra, então moeda digital do Calibra (consórcio encabeçado pelo Facebook), também não. Esta, porém, deixou Bancos Centrais perplexos com a possibilidade de uma moeda privada contornar políticas monetárias nacionais. Enquanto os Bancos Centrais ladram, as criptomoedas passam e a concorrência se estabelece.

Os sucessos do Euro e do acordo de Bretton Woods mostram que é possível uma arquitetura monetária que aumente o bem estar. Pode-se ou deve-se pensar num projeto para uma moeda internacional, marcado pela convergência do aprendizado histórico e a inovação tecnológica. O alcance transfronteiriço e uma infraestrutura compatível e interoperável são o ponto de partida para a busca da estabilidade do valor, qualificada pelo controle da oferta e proteção da privacidade.

Há outros aspectos a considerar como apropriação do seigniorage, construção de confiança, operação de pagamentos crossborder, prevenção contra lavagem de dinheiro, preservação do lastro, controle da oferta, subsistência de papel moeda, parâmetros de governança e proteção à privacidade. Além de tudo isso, o uso deve ser simples, barato e intuitivo.

Os bancos centrais já podem dar dois passos. O primeiro é a criação de redes com interoperabilidade e conversibilidade. Isso permite uma competição entre moedas mais benéfica aos consumidores. O segundo passo é iniciar o debate sobre o modelo ideal, com funções concentradas ou segregadas em uma ou mais moedas. O desafio é encontrar a melhor direção.

O futuro da moeda está na combinação entre cooperação e competição: a coopetição. O caminho é o da convergência entre o físico e o digital. Se nada disso funcionar, o usuário é soberano. Quem não tem cão, caça com gato.

Por Renata Baião e Roberto Troster. Artigo originalmente publicado no portal Valor Econômico.

Renata Baião é Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo desde 2012, membro do Núcleo de Direito Digital do Tribunal de Justiça de São Paulo e pesquisadora do BRI Brasil, rede que estuda implicações estratégicas e jurídicas do blockchain e criptoativos. Renata tem se dedicado às áreas de inovações tecnológicas e suas repercussões desde o início da sua carreira no Direito em 2000. Desde 2018 participa de uma série de eventos sobre blockchain, na condição de palestrante, professora ou painelista, como Barcelona Blockchain Week, Paris Blockchain Summit, LMA Summit, Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Escola Paulista da Magistratura, Receita Federal, Fundação Getúlio Vargas – SP, INSPER dentre outros.

Roberto Troster é sócio da Troster & Associados, bacharel e doutor em economia pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pós-graduado em banking pela Stonier School of Banking. Foi economista chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Associação Brasileira de Bancos (ABBC), professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e da USP e consultor de empresas, governos e instituições financeiras no Brasil e no exterior, incluindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).