Artigo: As centrais de cartório e os falsos liberais

Associações têm obtido receitas milionárias sem qualquer tipo de controle

No Brasil, no que toca às decisões de políticas e medidas econômicas, muitas vezes as disputas ideológicas não correspondem exatamente às suas vertentes de origem. Governos que se apresentam como de “esquerda” promovem medidas liberalizantes, e governos que se proclamam de “direita” contrariam os mais elementares preceitos do liberalismo econômico.

É o que assistimos em matéria de serviços notariais e de registro, os quais constituem atividade pública exercida em caráter privado, por delegação do poder público.

A lei 11.977/2009 determinou que todos os cartórios do país prestassem seus serviços por meio eletrônico. O Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014), por sua vez, consagrou bases de dados descentralizadas, interoperabilidade e pluralidade tecnológica.

Mais um passo foi dado com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.079/2018), promulgada no contexto do escândalo internacional da empresa Cambridge Analytica com o propósito de garantir a chamada “autodeterminação informativa” ou, em outras palavras, assegurar que os dados pessoais não sejam transferidos a terceiros sem prévia e explícita autorização.

Diversos atos normativos do Conselho Nacional de Justiça, porém, proibiram que os cartórios oferecessem diretamente seus serviços pela internet, atribuindo a prestação eletrônica dos serviços de notas e de registros para associações de cartorários, escolhidas sem qualquer procedimento licitatório.

As mencionadas associações de cartorários passaram a cobrar taxas dos usuários e dos próprios cartorários, disso resultando receitas milionárias, sobre as quais jamais incidiu qualquer controle. Ao mesmo tempo, bases de dados pessoais dos brasileiros foram criadas, sem o conhecimento e muito menos a autorização dos titulares dos dados.

Agora, em um governo cuja equipe econômica diariamente se regozija de ser “liberal”, pretende-se consolidar, de maneira ilegal, um monopólio em favor das associações de cartorários. Uma medida provisória, gestada cuidadosamente na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia, está em vias de criar um “superintermediário” monopolista que impede o acesso direto e desimpedido da sociedade brasileira aos cartórios na internet e, a um só tempo, confiar a uma pessoa jurídica de direito privado uma extraordinária base de dados pessoais.

Desnecessário dizer que monopólio é o oposto de concorrência e tampouco combina com liberalismo. Para além da flagrante ilegalidade da medida provisória, o governo Bolsonaro pode entrar para a história como um dos grandes inimigos do mercado nacional.

Rafael Valim
Professor visitante da Universidade de Manchester e diretor do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree)

Antonio Corrêa de Lacerda
Presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e professor da Faculdade de Economia, Administração, Ciências Contábeis e Atuariais da PUC-SP

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo. Link AQUI.