Economia solidária se apresenta como alternativa aos mais vulneráveis durante a pandemia

A palavra “coletivo” talvez nunca tenha feito tanto sentido quanto em 2020. Com o avanço da pandemia do novo coronavírus, o enorme potencial de contágio e poucas alternativas de tratamento cientificamente comprovadas, o isolamento social foi determinante para frear a transmissão viral. Foi preciso deixar de lado a perspectiva individual e se isolar para cuidar do outro, mas, ao mesmo tempo, redes de solidariedade aproximaram as pessoas, em um movimento para auxiliar aqueles que mais sofreram com os impactos socioeconômicos.

É comprovado que em 2020 as desigualdades sociais foram potencializadas. Segundo a Organização das Nações Unidas, conflitos, mudanças climáticas e a Covid-19 geraram o maior desafio humanitário desde a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, segundo o IBGE, o contingente de desempregados em outubro deste ano foi de 13,8 milhões e a taxa de desemprego bateu 14,1%, a maior da série histórica.

Nesse contexto, a economia popular solidária se apresenta como uma alternativa à população mais vulnerável pela grande possibilidade de geração de renda. São empreendimentos econômicos coletivos, pautados por valores como solidariedade e cooperação, voltados para o faturamento da produção e melhoria da qualidade de vida dos seus integrantes.

Para a vice-presidente do Cofecon, Denise Kassama Franco do Amaral, o economista pode e deve fazer parte desse processo de apoio aos negócios solidários. “O papel do economista consiste em ajudar a impulsioná-los para que efetivamente possam gerar renda e dignidade a seus participantes. Dessa forma, cumprimos o papel social de trabalhar pelo desenvolvimento econômico justo do País”, defende Denise Kassama. A vice-presidente ressalta que a economia solidária tem muito potencial para crescer e beneficiar uma parcela maior da população. No entanto, em sua opinião, são necessárias políticas públicas de apoio e estímulo ao setor.

Parcerias para desenvolvimento do setor

Em 2020 o Conselho Federal de Economia firmou parceria com a Cáritas Brasileira e publicou uma cartilha virtual que apresenta, de forma didática, boas práticas para gerenciar esse tipo de empresa. O material está disponível no site do Cofecon e os capítulos abordam temas práticos como planejamento, gestão financeira, documentos necessários para a criação e manutenção de empreendimentos solidários; e conceituais, como explicações sobre a diferença entre empresas comuns e solidárias e as principais características desse tipo de negócio.

A Cáritas atua há 40 anos no campo da economia solidária por meio da formação, organização e mobilização dos grupos comunitários e das redes, com ações voltadas a cooperativas e grupos de produção. Diretor-executivo da entidade, Carlos Humberto Campos explica que o Brasil está em um momento de organização do processo de mobilização da economia popular solidária e que a parceria com o Cofecon traz visibilidade a iniciativas do setor. 

“Ao mesmo tempo que os economistas contribuem com conhecimento técnico, com a viabilidade da produção, com os estudos técnicos de produção, consumo e mercado, também as experiências dos agricultores, dos pequenos produtos e dos artesãos contribuem com os economistas na perspectiva de conhecer e trabalhar uma outra economia, uma economia que não vise apenas o lucro, mas que esteja à serviço das pessoas e viabilize o bem viver e qualidade de vida”, destaca o diretor-executivo da Cáritas Brasileira.

Carlos Humberto Campos conta que há 136 grupos comunitários assistidos pela Cáritas Brasileira, entre cooperativas e associações, reunindo cerca de 2.500 pessoas em todo o País. Ele acredita no potencial desse segmento como alternativa para enfrentar o desemprego, a fome e a miséria. “Nesse tempo de pandemia, as experiências de economia popular solidária garantiram a sobrevivência e vida das pessoas em nossas comunidades e grupos; produzindo alimentos, entregando nas casas, partilhando muitas vezes com aqueles que não tinham, comercializando produtos para distribuição de cesta básica”, relatou. Na visão de Carlos Humberto, a economia solidária traz um olhar diferente sobre a produção de riqueza, geração de empregos e reconhecimento das pessoas no processo de produção. São negócios que não visam apenas o lucro, combatem a exclusão social por permitirem o processo de transformação dos trabalhadores, que passam a fazer a própria gestão do que produzem.

“Não podemos viver em um mundo com grandes concentrações de riqueza. É abominável ver que no período de pandemia de tantas mortes e fome, dor e sofrimento, seja um período que bancos e grandes empresas alcancem os maiores lucros. Esse modelo de economia não é humano, não está direcionado para as pessoas, tem outros interesses. A economia popular solidária trabalha na dimensão da justiça, do direito das pessoas, e sobretudo do bem viver de cada um”, destacou.

Mulheres Transformadoras

Por acreditar no potencial da economia solidária para modificar realidades, o Cofecon lançou, em 2020, o Prêmio Mulher Transformadora, no âmbito da Comissão Mulher Economista, coordenada pela conselheira federal Mônica Beraldo. Voltado a reconhecer mulheres que fazem a diferença na economia local, mesmo sem a formação em Ciências Econômicas, teve seis finalistas: Alice Kuerten, do Instituto Guga Kuerten (SC); Ticiana Rolim Queiroz, do Somos Todos Um (CE); Meiriane Nunes Amaro, do Artesãs do Paranoá (DF); Suelen Ramos, liderança do Movimento Nacional de Catadores do Amazonas (AM); Francisca Erbênia, coordenadora da Cáritas Dioscesana de Crateús (CE); e Lourdes Dill, do projeto Esperança Cooesperança de Santa Maria (RS).

O primeiro lugar ficou com Lourdes Dill, a organizadora da Feira Internacional do Cooperativismo, evento que está em sua 27ª edição e neste ano ocorreu de forma virtual por causa da pandemia do novo coronavírus. Lourdes conta que está à frente do projeto Esperança Cooesperança há 33 anos. A iniciativa atende 34 municípios da região, com 300 grupos organizados e um público de mais de 25 mil pessoas. “São mais de cinco mil famílias que participam desse trabalho no campo e na cidade, em diferentes segmentos. São agricultores familiares, agroindústria, pessoas que trabalham com confecções, com artesanato, com plantas ornamentais, povos indígenas, quilombolas, catadores, e um grande público também de consumidores que se organizam e participam conosco”, explica. Ela conta que os participantes do projeto contam com um espaço físico de comercialização direta: uma grande feira que ocorre aos sábados, feiras nas praças de Santa Maria e a tradicional Feicoop.

Lourdes Dill acredita que, considerando que na economia solidária não existem patrões e empregados, mas todos gerenciam o próprio negócio, o segmento pode representar um projeto de futuro para a humanidade. “Com o grande índice de desemprego que nós temos hoje não vai haver mais emprego tradicional para todo mundo. Estamos vendo muitas pessoas começando a trabalhar por conta própria, outros se organizam. No projeto Esperança Cooesperança nós temos a participação de pessoas que já têm doutorado, mestrado, especialização, cursos superiores em várias áreas e não conseguem emprego. Vemos que muitos têm optado por uma nova forma de organização do trabalho nessa dimensão autogestionária e do bem viver”, comenta.

Francisca Erbênia de Souza, também finalista do Prêmio Mulher Transformadora, defende que um outo mundo é possível a partir do olhar da economia popular solidária. Natural do sertão central, de Quixeramobim (CE), afirma que a essência da economia solidária é fortalecer o que já é natural entre os mais vulneráveis socioeconomicamente: a partilha e a solidariedade. “Esse modelo é inclusivo, solidário, e seu fio condutor é o cuidado com a vida. Temos toda uma metodologia de aproximar, ver a realidade e nos unirmos para transformá-la em espaços de discussão e de qualidade de vida”, explica.

Erbênia relata que antes de investirem na economia popular solidária, a cultura alimentar da cidade era de basicamente arroz e feijão, com algumas exceções de produtores que criavam animais e contavam com proteína nas refeições. A economia solidária diversificou e tornou a alimentação das famílias mais rica na medida em que descobriram o valor de alimentos como a cenoura, diversas formas de preparo e a venda do excedente para complementar a renda. Além disso, beneficiou a produção do quintal, que virou horta, com reaproveitamento de folhas de verduras e de água para irrigação. Outra dimensão apontada por Francisca Erbênia foram as qualificações e rodas de conversa. “Por que tudo tem que virar moeda de troca? Por que não conseguimos ser mais solidários a partir do que temos? A economia popular solidária nos permite a fazer e a vivenciar o milagre da multiplicação dos pães”, afirma.

Suelen Cardoso Ramos é catadora de materiais recicláveis na cidade de Manaus e atua como liderança do Movimento Nacional de Catadores do Amazonas. Ela conta que em 2008 começou a trabalhar nesse ramo por necessidade financeira e que passou a lutar para que o grupo de pessoas que atuavam nessa área fossem reconhecidos como associação ou cooperativa. Desde então, se formou em Gestão Ambiental, representa os catadores no Conselho Estadual de Meio Ambiente do Amazonas e no Fórum de Logística Reversa “Dê a mão para o futuro”, em que acompanha duas associações e cooperativas para que sejam incluídos de forma organizada na sociedade, tirando-os da insalubridade e conquistando espaços.

Em sua visão, a pandemia mostrou que todos são seres iguais, independentemente de serem ricos ou pobres, e que precisam viver a solidariedade com o próximo, ajudando e dividindo o que têm. “A partir do momento em que eu compreendi o que é a economia solidária, nunca mais passei fome e nem necessidade; e principalmente, ao praticá-la a minha vida mudou completamente”, revela.

A vice-presidente do Cofecon, Denise Kassama, acredita na economia solidária como uma filosofia de vida que muda a percepção sobre o dinheiro, promovendo uma busca mais humana pela qualidade de vida. “Entendemos que é de grande importância o Cofecon apoiar tais iniciativas, cumprindo seu papel social e apoiando legitimas iniciativas de geração de renda de forma mais justa e humana”, finaliza.

(Reportagem publicada na 38ª edição da revista Economistas – http://cofecon.org.br/downloads/revistas/2020/capa38.pdf)