Artigo – Política monetária, governança e bem estar

Por Roberto Troster – Economista

Todos os meses, centenas de relatórios, tabelas, pesquisas, artigos, apresentações e entrevistas sobre a política monetária no Brasil são divulgados.  Analistas, acadêmicos, jornalistas e cidadãos dissecam esse vasto material para avaliar sua dinâmica.

Entretanto, o resultado é limitado, não por falha dos diagnósticos, mas em razão de que as perguntas mais importantes não são feitas. Ilustrando o ponto, há um debate intenso sobre se o COPOM deveria ou não reduzir a taxa em 0,25%, mas fica de fora qual é o papel da política monetária no desenvolvimento do Brasil.

A política monetária pode fazer mais do que está fazendo. Atualmente, o debate está Copomizado. Está focada nas reuniões do Copom que determinam a SELIC (uma taxa interbancária de um dia). As decisões são tomadas em um processo em grande estilo com comunicados, atas e relatórios que detalham seus fundamentos, boletins com as expectativas do mercado, modelos econométricos que dão suporte, encontros regulares com economistas, uma equipe qualificada que analisa minuciosamente todos os fatores que influenciam e é acompanhado extensivamente pela imprensa.

É importante. Todavia, não é a única variável, nem é a que mais atrapalha o desenvolvimento do país. As distorções no tratamento do que é ou não relevante são enormes. Além do controle da inflação, há outros aspectos valiosos que devem ser considerados, como o papel do crédito no crescimento e na inclusão, o controle da volatilidade cambial, os custos de rolagem da dívida pública e do carregamento das reservas internacionais e a indexação de ativos e passivos para citar alguns.

O momento exige uma reflexão do porque e do como da política monetária. Seus objetivos deveriam ser os mesmos da política econômica, que são quatro, chamados de “interesse público” ou de “bem estar”: i. Equidade, ii. Eficiência, iii. Estabilidade e iv. Sustentabilidade.

O primeiro se refere à igualdade de direitos, à imparcialidade e à inclusão e ao emprego; o segundo, à uma alocação de recursos sem desperdícios que induza a um crescimento elevado e sustentado; o terceiro, à estabilidade de preços e de atividade; e o quarto, à sustentabilidade econômica. Para atingi-los, o governo usa os instrumentos disponíveis, como regulação, alocação de recursos e tributação.

Em algumas ocasiões, apesar de o anúncio do objetivo ser de interesse público, na realidade é para proveito de poucos; o objetivo é de “interesse privado”, como conseguir benefício próprio ou ceder à pressões de grupos influentes. Em outras oportunidades, o desempenho fica aquém do potencial por uma concepção equivocada do uso dos instrumentos disponíveis ou por má governança.

A contribuição do sistema financeiro brasileiro pode ser analisada com muitas métricas. É um quadro com contrastes em que os destaques positivos são a solvência, uma rede abrangente e um sistema de pagamentos sofisticado. Entretanto, indicadores da intermediação de eficiência, equidade, estabilidade e sustentabilidade apontam que é disfuncional.

O calcanhar de Aquiles do sistema financeiro brasileiro é o crédito. É volátil e caro. As margens de crédito no Brasil estão entre as mais altas do mundo. Nos levantamentos feitos, o Brasil sempre aparece entre os mais onerosos do planeta. É agravado por que os prazos são muito curtos. Há uma circularidade no argumento, prazos curtos também explicam custos, inadimplência e taxas altas.

O sistema de intermediação não é eficiente. Enquanto a taxa Selic, centro das atenções, está em 6,50%, há taxas para pessoa jurídica que são cinqüenta vezes maiores e para pessoa física que são mais de cem vezes superiores. A relação crédito/PIB está na metade do seu potencial.

Não é equitativo. A inadimplência está no patamar mais alto da história. Mais de cinco milhões de empresas (metade do total) e de sessenta e dois milhões de cidadãos (dois quintos do total) têm anotações de atrasos. Têm sua inserção econômica dificultada.

O sistema não é nem estável nem sustentável. A linha com o maior volume de concessões de crédito, tanto para pessoa física como para a jurídica, é o cheque especial que tem uma taxa média anual superior a 300% e prazo inferior a um mês. É disfuncional e não promove o bem estar como poderia. Ajustes na governança poderiam aumentar a contribuição do setor ao país.

Um sistema de intermediação financeira tem como requisito uma(s) instituição (ções) que cumpra as funções de promover eficiência, equidade, estabilidade e sustentabilidade. A organização e as funções variam de país a país e ao longo do tempo, em razão do ambiente institucional, velocidade de adaptação a mudanças e no entendimento de seu papel na economia.

Num primeiro momento na história e no debate acadêmico a responsabilidade era de bancos comerciais privados, ou de suas associações; aos poucos essas atividades foram migrando para instituições com propósitos específicos.

Cada caso é um caso. No Brasil, o papel é cumprido principalmente pelo Banco Central, mas também pelo CMN – Conselho Monetário Nacional, pela CVM – Comissão de Valores Mobiliários, pelo FGC – Fundo Garantidor de Crédito, por associações de instituições financeiras e por órgãos de defesa do consumidor, com sobreposições e indefinições de competências e, conseqüentemente com uma gestão menos eficaz e perdas dissipadas de eficiência, equidade, estabilidade e sustentabilidade.

As atribuições não são definidas claramente, há sobreposições em alguns casos e omissões em outros (até porque alguns problemas não são reconhecidos como tal rapidamente).

Uma atuação competente e sintonizada para alcançar os quatro objetivos tem como resultado um bem-estar maior para todos, uma sinergia de esforços dentro do governo e uma transparência maior para a sociedade de sua contribuição ao país; pressupõe uma governança adequada.

O quadro institucional é basicamente o mesmo há meio século e foi uma adaptação ao Brasil do Glass Stegal Act norte americano de 1933 que segmentava o sistema financeiro em estanques. O Banco Central focava na atividade bancária stricto senso, a CVM – Comissão de Valores Mobiliários (espelho da SEC – Securities Exchange Comission) no mercado de capitais e assim por diante.

Agravando o quadro, as instituições têm sua estrutura mais voltada para o funcionamento interno do que para sua função na economia. Ilustrando o ponto, o Banco Central do Brasil possui oito diretorias: Administração, Assuntos Internacionais e Gestão de Riscos Corporativos, Fiscalização, Organização do Sistema Financeiro e de Resolução, Política Monetária, Regulação, Relacionamento Institucional e Cidadania (atendimento ao cidadão).

A missão do Banco Central é: “Assegurar a estabilidade do poder de compra da moeda e um sistema financeiro sólido e eficiente.” Não inclui equidade, estabilidade e sustentabilidade. Como destacado acima, é eficiente em sistema de pagamentos, mas não de intermediação.

A CVM tem como objetivo o funcionamento eficiente dos mercados de valores mobiliários, que quando foi criada tinha quase nenhuma sobreposição com o mercado bancário. Mas não é mais o caso. Dessa forma, a mesma função é feita por duas instituições simultaneamente.

Resumindo, no Brasil, há uma sobreposição e concentração das competências reguladoras, supervisoras e gestoras entre instituições com perdas de transparência, foco e eficiência que pode e deve ser corrigida. O desejado seria uma segregação das funções com um mandato específico para os objetivos, tais como estabilidade monetária e outros.

Melhorar a indústria é possível e viável, para tanto, o fundamental é mudar o paradigma vigente, de uma intermediação num ambiente instável, portanto, onde o importante era a solidez, a rentabilidade e o curto prazo, para outro, adequado aos tempos atuais, onde além de sólido e rentável, é necessário foco no longo prazo, e em sua função social: inclusão bancária, estabilidade da oferta de crédito, sustentabilidade, inovação e globalização. É possível e é viável.

Os espaços para aprimoramentos no sistema bancário brasileiro, tanto da parte do governo, como do setor privado são difusos. Para tanto, é peremptório uma fixação de metas, prazos e responsabilidades. Essas definições apontam para onde o sistema tem que ir, indicariam que medidas têm que ser adotadas e seus impactos.

À semelhança do regime de metas de inflação, dever-se-ia adotar as metas de cada um dos objetivos de política econômica:

  1. Metas de eficiência da intermediação – com objetivo de baixar o custo do crédito. Exigiria um plano de ação consistente com o objetivo, em especial na redução de custos da intermediação.
  2. Metas de equidade – com metas de bancarização de acesso, de uso e de adimplência.

III. Metas de estabilidade – a questão da solvência está bem encaminhada e a monetária já está estruturada; o foco seria na estabilidade da oferta de crédito, com prazos mais longos e menos sujeita a choques de liquidez. Incluiria metas de estabilidade da taxa de câmbio também.

  1. Metas de sustentabilidade – focaria em parâmetros de sustentabilidade das dívidas privadas.

Note-se que essas metas podem e devem ser fruto de ações tanto do setor público como do privado. O monitoramento pode ser feito por ambos, bem como por instituições não envolvidas, como a imprensa, instituições de pesquisa e outros.

Cada meta deveria ter (pelo menos) uma instituição responsável para alcançar-la. O ideal seria fazer uma reforma no estilo da FSA – Financial Services Authority, do Reino Unido, que promoveu uma fusão de órgãos regulatórios e supervisores e deu-lhes um mandato específico.

Aqui no Brasil, há a sobreposição das estruturas prudenciais e regulatórias da CVM, da Susep e do BACEN que deveriam ser analisadas. Entretanto, as responsabilidades podem ser compartilhadas na estrutura atual por todas as instituições envolvidas com o monitoramento das metas, o desenho de medidas e as ações para sua implantação.

Uma sugestão para o Banco Central do Brasil é manter o número de diretorias em oito, das quais quatro focadas para o escopo do BC e quatro de apoio. As quatro diretorias sintonizadas com os objetivos seriam: I – Estabilidade Monetária (política monetária), II – Estabilidade Bancária e Financeira, III. Equidade, e IV – Eficiência da Intermediação, e as quatro de apoio seriam: V – Regulação, VI – Assuntos Internacionais e Gestão de Riscos Corporativos, VII – Administração e Relacionamento Institucional e Cidadania, e VIII – Fiscalização.

  1. A diretoria de Estabilidade Monetária teria como responsabilidade as metas de inflação. São metas já definidas no âmbito do poder executivo e bem executadas pelo BC. A proposta é que o planejamento, a execução da política monetária, a avaliação dos mecanismos de transmissão e sua divulgação ficariam sob esta diretoria.

II – A diretoria de estabilidade bancária e financeira estaria ligada à questão prudencial: a supervisão bancária, gerenciamento de riscos e a aplicação de Basiléia III, licenciamento, restrições bancárias – diversificação, liquidez, divulgação de informações, transparência, etc. Teria como objetivo a solidez do sistema e sua meta seria um índice composto de solvência. Também teria como objetivo imunizar a economia contra choques externos. Suas metas seriam índices de vulnerabilidade.

III – A diretoria de equidade – cuidaria da inclusão e do acesso ao crédito responsável.  Os pequenos tomadores têm menos relacionamentos bancários e são menos sofisticados financeiramente – necessitam de uma proteção específica do governo. Diferente de outros países, as ações para o pequeno tomador são mínimas. Exige-se certificação para orientar aplicações de grandes investidores, mas não há parâmetros para orientar a concessão criteriosa de crédito, tributa-se mais a quem paga mais juros (em vez de menos), não há ações contra juros abusivos, os levantamentos estatísticos são superficiais.

IV – A diretoria de eficiência da intermediação teria um papel fundamental. Sua função principal seria desenvolver a estrutura financeira de forma a promover um fluxo eficiente de recursos a todos os setores econômicos, ou seja, seria a de promover a expansão do crédito e a bancarização. Ocupar-se-ia das questões bancárias stricto sensu, bem como acompanharia outros entraves à intermediação como a tributação e questões institucionais. Teria metas de margem (spread) e metas de bancarização – acesso e uso – para aferir seu desempenho.

Outras medidas para melhorar a governança poderia ser aumentar a representatividade do CMN – Conselho Monetário Nacional, incluindo participantes do sistema financeiro e de outros setores empresariais no CMN, conforme sua concepção original. Contribuindo com uma normatização mais legítima e focada do órgão.

Uma contribuição importante para melhorar a governança, seria a independência do Banco Central do Brasil, imunizando-o das pressões e tentações políticas conjunturais, permitindo que seus integrantes posterguem a popularidade imediata em troca de benefícios duradouros.

Há críticos que afirmam que a autonomia do banco central implica uma perda da soberania e independência do governo, sem explicitar a que tipo de soberania e independência se refere. Convém lembrar que a soberania (e independência) ordinariamente se refere tanto à proteção dos interesses do país como de seu soberano (daí o nome), implicitamente assumindo que ambos se confundem.

Na prática isso não acontece porque os interesses imediatos (leia-se popularidade) e pressões do governante se contrapõem aos interesses duradouros da sociedade. Ou seja, se por um lado a autonomia do banco central restringe a independência do Executivo e do Legislativo, por outro aumenta a soberania da população com mais bem estar.

Falta ao país uma política bancária que trate do custo do crédito, da cunha tributária, da transparência, da proteção ao consumidor bancário, do direcionamento de recursos, do desempenho dos bancos públicos, da estabilidade da oferta, dos compulsórios, do processo de precificação, da concorrência, do financiamento de longo prazo, do microcrédito, da bancarização, do uso da tecnologia, do ônus regulatório, dos financiamentos de longo prazo, do papel de bancos menores, da liquidez, de protocolos de tratamento dos inadimplentes, dos custos de observância, enfim, de todos os demais fatores e da taxa Selic.

O setor não pode ficar refém do vai e vem das circunstâncias, o momento pede uma modernização institucional. Uma melhor governança pode contribuir para uma política monetária que propicie mais bem estar ao país.

Uma intermediação financeira eficiente e estável interessa ao país. O crédito é a ponte entre o presente e o futuro e necessita de uma política consistente que alinhe interesses privados com sociais, que proporcione mais lucros e mais legítimos para os bancos e mais desenvolvimento para o país. Não são objetivos incompatíveis, pelo contrário. É possível, há uma janela de oportunidade que tem que ser usufruída.