Artigo – Não chega a ser uma reforma tributária

por Paulo Dantas da Costa – economista, conselheiro e ex-presidente do Conselho Federal de Economia

Tramita no parlamento brasileiro proposta de Emenda Constitucional com o objetivo de processar alterações no sistema tributário nacional. Na primeira quinzena de dezembro/2018, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou proposta de reforma tributária, tendo como ponto básico a unificação de nove tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS, Cofins, Cide, Pasep, IOF e Salário-educação) em um só, o Imposto sobre Operações de Bens e Serviços (IBS). Neste junho/2019, a CCJ da mesma Câmara restringiu a proposta para os cinco primeiros tributos, unificada no mesmo IBS.

A unificação defendida em ambas as propostas está sustentada no principal argumento de que se alcançaria a simplificação dos procedimentos burocráticos para cumprimento das obrigações fiscais. Sem desconhecer a elevada complexidade dos procedimentos, o fato é que o argumento está muito longe do ponto nuclear que diz respeito à grande deformação do modelo tributário brasileiro, caracterizado por uma alta incidência de tributos indiretos em detrimento dos diretos. O projeto inicial tinha a pretensão de representar “uma ampla reforma do modelo brasileiro de tributação de bens e serviços”, conforme consta em suas justificativas.

Antes de tocar nas questões que envolvem a tributação direta versus a indireta é importante destacar um aspecto muito maior, relacionado com a brutal concentração da riqueza e da renda, o que faz do Brasil um dos países mais injustos do mundo. Basta citar que quase 30% da renda brasileira estão nas mãos do 1% mais rico da população, conforme Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, trabalho construído com a participação do economista francês Thomas Piketty (os dados do Brasil se limitam aos anos 2001 a 2015).

Diante de um quadro dessa magnitude parece inadequado chamar de reforma tributária um limitado conjunto de alterações que não resultam em nenhuma repercussão de natureza econômica e muito menos social em favor da parte menos privilegiada dessa injusta sociedade. O citado projeto prevê, restritamente, apenas modificações na tributação indireta, a menos que as modificações resultem em consideráveis reduções dos tributos, com claros efeitos nos preços, circunstâncias não previstas dadas as evidentes possibilidades de redução na arrecadação.

A tributação indireta deve ser adotada seletivamente, de modo a não alcançar pessoas de baixa renda quando elas adquirem bens ou serviços essenciais (alimentos e medicamentos, por exemplo), ficando reservada a sua aplicação mais intensa para operações que envolvem produtos e serviços não essenciais, como os artigos de luxo, bebidas e cigarros. A tributação direta, ao contrário, é aplicada de forma mais justa, a incidir sobre a renda, mais marcadamente sobre as altas rendas, e sobre o estoque de riquezas patrimoniais, resultando em evidentes consequências econômicas ao alcançar os que efetivamente dispõem de capacidade contributiva.

Alguns dados dão conta da clara opção brasileira pela tributação indireta. No ano de 2015, 22,7% do produto da arrecadação tributária foi proveniente do imposto sobre a renda e dos tributos sobre o patrimônio, 49,7% sobre o consumo e 27,6% definidos como outros (basicamente incidências sobre a folha de pagamento). Nos países mais evoluídos economicamente – EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá – as práticas tributárias estão pautadas numa lógica bem diversa, onde a tributação direta tem mais importância. Nos Estados Unidos, por exemplo, naquele mesmo ano de 2015, a arrecadação com Imposto de Renda e sobre o patrimônio representou 59,4% do total arrecadado, 17,0% sobre o consumo e 23,6% de outros; os dados médios para os países da OCDE são, na mesma sequência, 39,6%, 32,4% e 28%. (Dados coletados em A Reforma Tributária Necessária, 2018: Anfip, Fenafisco).

No Brasil, como visto, a hipótese da tributação direta tem baixo significado econômico, cabendo citar que no ano de 2015 a arrecadação com os seis tributos sobre a propriedade (Sobre Grandes Fortunas, ITR, ITCMD, IPVA, IPTU e ITBI) alcançou a marca de pífio 1,45% do PIB num universo de 32,11% do PIB correspondente à carga tributária total registrada naquele ano. (Fonte: idem).

De outra parte, o Imposto de Renda (IR) brasileiro também é de baixa expressão econômica em termos de arrecadação, figurando em 48º lugar numa relação do mesmo tributo aplicado em 57 países da América Latina e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. (Dados de 2015, idem).

Uma reforma tributária digna desse nome passaria por uma revisão de parte do contrato social. É essencial que os ricos e poderosos entendam/concordem que a sociedade que lhes proporcionou todas as possibilidades para acumulação de riquezas necessita que parte do fluxo financeiro dessa mesma acumulação retorne para que o gestor da referida sociedade, o Estado, por ela delegado, desenvolva programas em favor dos menos privilegiados, ressaltando que esses mesmos, na maioria das vezes, é que proporcionam as acumulações econômicas em favor daqueles. Seria necessária a adoção de iniciativas que transformem, ano a ano, aquele quadro ocorrido em 2015, aumentando a arrecadação dos 22,7% de tributos diretos e reduzindo a arrecadação dos tributos indiretos de 49,7%, até atingir o nível de tributação que é praticado nos países mais avançados.

Há que se concluir que o modelo tributário brasileiro carece sim de uma profunda reforma que busque alcançar quem de fato deve arcar com o ônus tributário, os ricos e poderosos, retirando das empresas tal obrigação que é transferida para as pessoas, via preços, sem a possibilidade da identificação das classes sociais às quais as mesmas pessoas pertencem, às vezes quando da realização de operações econômicas marcadas até por alguma perversidade social, como é o caso da cobrança de impostos nas vendas de leite, pão, arroz, feijão e açúcar a integrantes de classes sociais que estão na base da pirâmide social, pelo acionamento da tributação indireta.

Do lado da tributação direta, fala-se frequentemente no que deixa de ser recolhido em razão da não incidência tributária sobre os ganhos decorrentes de lucros e dividendos, mas não é só isso. Os rentistas brasileiros também são brandamente atingidos pelo imposto de renda, para citar outro caso tão grave quanto aquele.

Por fim, acrescente-se ainda ser absolutamente indevido imaginar que os ajustes na tributação indireta, aqui mencionados, teriam o condão de contribuir para o muito esperado crescimento econômico, como vem sendo amplamente propalado em defesa da enviesada reforma tributária.

  • Artigo publicado no Jornal GGN, em 03 de julho de 2019: https://jornalggn.com.br/artigos/nao-chega-a-ser-uma-reforma-tributaria-por-paulo-dantas-da-costa/