Artigo – Afinal, o governo tem restrição financeira?

Muito interessante o debate provocado pelo economista André Lara Resende, em uma série de artigos publicados no Valor Econômico nos últimos meses, com réplicas de outros economistas. Apesar da dificuldade de identificar um tema principal, pode-se assumir que seria a restrição financeira do governo. O autor se esforça em ser claro, apesar de o assunto demandar conhecimentos pouco acessíveis aos não iniciados, mas se detém em conceitos e relações bem gerais, sem explorar satisfatoriamente os desdobramentos específicos da situação brasileira corrente. Por certo, ele não tem obrigação de realizar tal exploração, podendo manter sua contribuição em termos mais abstratos e gerais. Não obstante, nos parece útil trazer suas provocações para melhorar o entendimento de nossos desafios macroeconômicos atuais.

O autor argumenta que, com sistema financeiro suficientemente desenvolvido, o governo, através do Banco Central, controla a taxa de juros, ao invés da quantidade de moeda em circulação, para procurar manter a demanda agregada nos níveis que desejar. Caso esses níveis sejam muito altos, a economia funcionará com desemprego excessivo. Sendo muito baixos, com pressões inflacionárias. A ideia tradicional, de que o Banco Central deveria controlar os meios de pagamento, não mais funciona nessas economias.

O avanço da tecnologia da informação e comunicação (TIC) facilitou de tal maneira os pagamentos, com cartões de crédito e débito, parcelamentos nos cartões, operações de crédito on line, em qualquer momento e local, que tornou sem sentido qualquer pretensão de controle desses meios em toda a economia. Lara Resende vai além, argumentando que a chamada “Teoria Quantitativa da Moeda”, segundo a qual a taxa de crescimento do estoque de moeda em circulação será igual à taxa de crescimento da produção mais a do nível de preços, nunca funcionou adequadamente em qualquer economia.

Ao menos em economias com certo desenvolvimento do sistema financeiro, inclusive de utilização da TIC, governo e Banco Central não conseguem restringir meios de pagamento. O dispêndio privado seria determinado pela renda, riqueza e preferências, estas últimas condicionadas por fatores como confiança, expectativas e incentivos. Nesse contexto atua a política econômica, que, no curto prazo, apenas pode ter a pretensão de ajustar o dispêndio, público e privado, à capacidade produtiva da economia, a qual precisa de prazos mais longos para se alterar.

Como resultante da política fiscal – receitas e despesas públicas – e da política monetária – ritmo de capitalização determinado pelos níveis de taxas de juros – a dívida do governo vai se acumulando, podendo crescer mais que o valor da produção, em determinados períodos. A sua parcela em títulos tem alta liquidez e pode sofrer a concorrência de outros títulos, privados ou externos. No caso do Brasil, as evidências são de que as taxas de juros são mantidas acima de qualquer concorrência, pela necessidade de controle da inflação em uma economia com a inércia inflacionária, ainda hoje, possivelmente, a maior do mundo.

Quanto menor a diferença entre as taxas de capitalização da dívida pública e as taxas de crescimento econômico, menor a contribuição dos juros para o crescimento da dívida em relação ao PIB e maior o espaço para a elevação dos gastos públicos primários. Adicionalmente, esses gastos podem ser em investimentos públicos e/ou estimularem os investimentos privados, contribuindo para elevar o PIB, que aumentaria a receita tributária, ambos melhorando o indicador Dívida Pública/PIB. Em tais circunstâncias, o argumento de Lara Resende, de que não existe restrição financeira para um governo que se endivida em sua própria moeda, ganha mais força.

Com base nesses argumentos, seria muito fácil aumentar o ritmo de crescimento da economia brasileira na conjuntura atual. Simplesmente se elevaria os gastos públicos o necessário para retornar ao pleno emprego e estimular suficiente elevação do investimento privado. Contudo, a percepção de risco de carregamento se elevaria muito com um persistente aumento da dívida pública em relação ao PIB, levando à crescente redução dos seus prazos de vencimento e expansão da parcela em operações compromissadas overnight. Assim, seriam geradas condições propícias a uma fuga massiva de capitais, com desvalorizações cambiais e perdas excessivas de reservas internacionais, trazendo efeitos potencialmente desastrosos sobre a inflação e o emprego.

Importa avaliar a fonte e a natureza desses riscos de carregamento. Possivelmente, Lara Resende diria que se trata de profecias autorrealizáveis. Com efeito, não fora tais profecias, a taxas de juros não muito acima das taxas de crescimento econômico e déficits públicos nos limites requeridos pelo pleno emprego, o endividamento público com a própria moeda se manteria longe de estourar, como uma bolha, ainda que pudesse se elevar bastante em relação ao PIB.

O temor dos agentes econômicos deve vir da falsa analogia com os casos em que o endividamento não é com a própria moeda, quando a possibilidade de insolvência é bem concreta, se a disponibilidade de divisas estiver comprometida. Seria o que ocorre com a Argentina, mais uma vez, e ocorreu com a Grécia, há alguns anos. O Brasil ainda é uma economia muito fechada, que não demanda tanto financiamento externo. A “Crise da Dívida Externa”, que tivemos no final do século passado, decorreu da estratégia de enfrentar os aumentos dos preços do petróleo contraindo empréstimos externos sem reduzir o consumo daquela commodity. Num momento seguinte, o choque de taxas de juros internacionais nos jogou de uma vez naquela crise.

Ao lado desse temor infundado, grande parcela das ordens de compra e venda de ativos financeiros, em escala mundial, são disparadas por robôs, a partir de parâmetros como dívida pública e avaliação das agências de rating, sem entrar em detalhes sobre as especificidades de cada país, como a necessidade de disponibilidade de divisas. É importante que ideias como essas de Lara Resende circulem entre os agentes econômicos, embora não se saiba em que medida elas possam contribuir para desconstruir restrições mantidas por profecias autorrealizáveis.

Fernando de Aquino Fonseca Neto. Doutor em Economia pela UnB, Analista do Banco Central e Conselheiro do Cofecon.