O Boletim Focus, a pretensiosa precisão das “previsões” econômicas e os interesses velados do sistema financeiro

Artigo de opinião pelo conselheiro regional José Luis Oreiro

Ao ler a matéria “expectativas de inflação aprofundam desancoragem antes do copom” no Valor Econômico de hoje (07/05/2024) me chamou a atenção que os analistas do mercado financeiro estão preocupados com um aumento da inflação esperada para 2025 NA SEGUNDA CASA DECIMAL, ou seja, de 3,6% para 3,64% a.a. Essa desancoragem de expectativas na segunda casa decimal justificaria, pasmem, uma elevação da taxa de juros ao final de 2024, com a mediana das projeções subindo de 9% para 9,63% nas ultimas quatro semanas.

Como economista profissional e pesquisador de macroeconomia por um período superior a 30 anos posso afirmar aos leitores que é simplesmente impossível fazer previsões sobre qualquer tipo de variável macroeconômica com precisão de duas casas decimais para qualquer período de tempo, seja ele curto ou longo. A incerteza, enfatizada por John Maynard Keynes (1936) na sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, é a única certeza que se pode ter em economia. Nenhum agente ou tomador de decisão possui a informação ou a capacidade cognitiva necessária para apreender o modelo correto de funcionamento da economia e muito menos antecipar mudanças nos parâmetros desse modelo que resultem de mudanças estruturais e institucionais que ocorrem a todo o momento na economia. Só para ficar com um exemplo recente, quem teria previsto a um mês atrás a catástrofe ambiental que se abateu sobre o Estado do Rio Grande do Sul nos últimos dias, a qual terá um efeito ainda não discernível ou calculável sobre a trajetória da inflação e do nível de atividade econômica no Brasil ao longo do ano de 2024? Quem antecipou, no início de 2024, que haveria um recrudescimento das tensões geopoliticas no mundo devido ao ataque do Irá a Israel no mês passado e que isso levaria a um movimento de valorização do dólar em escala global, Brasil incluso?

Os economistas do mainstream economics gostam de arrotar para o grande público um ar de sabedoria e conhecimento que eles simplesmente não possuem. Fazer previsões sobre o comportamento de variáveis macroeconômicas sujeitas a todo tipo de choque exógeno e de mudanças estruturais e institucionais endógenas com um grau de precisão de duas casas decimais é puro e simples charlatanismo. Os princípios básicos de honestidade intelectual obrigam aos economistas reconhecer a insuficiência de seu conhecimento sobre o mundo econômico e fazer previsões na forma de um intervalo de variação. Aliás essa é precisamente a razão pela qual quando foi instituído o Regime de Metas de Inflação no Brasil em 1999 se escolheu adotar uma banda de variação para a meta inflacionária definida pelo Conselho Monetário Nacional: a autoridade monetária não tem o conhecimento, a capacidade cognitiva ou o poder necessário para fixar a taxa de inflação num determinado ano em um valor pontualmente exato. Pequenos desvios da inflação efetiva com relação ao centro da meta não significam, portanto, um descumprimento da meta inflacionária mas apenas a capacidade imperfeita do Banco Central de prever os efeitos de variações da taxa de juros sobre a taxa de inflação, e a influência de vários outros fatores, cuja ocorrência não pode ser antecipada, sobre o comportamento da taxa de inflação. Podemos discutir se o intervalo atual de tolerância de 1.5 p.p para mais ou para menos é adequado ou não. Eu particularmente acho que o intervalo de tolerância poderia ser reduzido para 1.0 p.p. Mas, mesmo nesse caso, uma inflação esperada de 3,64% para o ano de 2025 estaria confortavelmente dentro do intervalo de variação do regime de metas de inflação. Logo, não há NENHUMA RAZÃO PELA QUAL O COPOM REDUZA O RITMO DE QUEDA DA SELIC NA REUNIÃO DE AMANHA (08/05) de 0,5 p.p para 0,25 p.p.

Como economista profissional preciso separar aquilo que eu gostaria que o BCB fizesse daquilo que ele vai efetivamente fazer. Estou convencido, além da margem de dúvida razoável, que o BCB irá reduzir o ritmo de queda da Selic para 0,25 p.p na reunião de amanha do COPOM. Isso porque o mercado financeiro e o BCB já coordenaram esse jogo de maneira tácita nas últimas semanas. A mudança da meta fiscal para 2025 de 0,5% de superávit primário para 0% e o aumento da incerteza geopolitica levaram o Presidente da autoridade monetária a fazer alertas públicos sobre os maiores riscos inflacionários (os quais o boletim Focus avalia na segunda casa decimal) para 2025. Esses alertas alimentam as projeções de juro futuro pelo mercado financeiro, fazendo com que a inclinação da curva de rendimentos aumente, sinalizando assim que o mercado acredita que o Banco Central terá que ser mais comedido com o movimento de redução da taxa de juros porque aumentaram os riscos inflacionários. Ai essas expectativas do mercado alimentam o boletim Focus, o qual é um dos elementos usados pelo COPOM para decidir sobre a meta de juros na reunião da próxima quarta-feira. Tudo isso é feito debaixo dos nossos olhos e narizes, sem que ninguém pare pra se indagar se não se trata de um grande jogo de cena para justificar um resultado que foi tacitamente combinado entre as partes do jogo da selic.

A cereja do bolo desse misancene é que no debate público sobre o desequilíbrio fiscal Brasileiro nunca se menciona o pagamento de juros da dívida pública como o principal fator de desequilíbrio fiscal, representando um valor três vezes superior ao déficit primário das contas públicas. Trata-se da “despesa ausente” para utilizar um termo criado pelo meu colega e amigo do IPEA Luis Carlos Garcia de Magalhães.

Como ninguém liga para a montanha de dinheiro público que é gasta com o pagamento de juros da dívida pública brasileira, o Banco Central fica com as mãos inteiramente livres para fixar o patamar da selic onde lhe der na veneta. Aos favos com os escrupulos já disse alguêm certa vez sobre o AI-5. A questão de economia política, solenemente ignorada no debate brasileiro, é que essa montanha de dinheiro gasta com juros da dívida pública vai parar nos bolsos dos agentes do mercado financeiro e dos economistas que trabalham para eles, os quais são regiamente pagos para criar uma TPC (Tensão pré-copom) justo nas semanas e dias que antecedem uma reunião do COPOM.

Uma vez um colega economista de Goiás me disse uma frase que nunca esqueci: “Se você quer entender a opinião de alguém sobre algum assunto, veja primeiro quem paga o seu contracheque, pois muitas vezes a pessoa é paga para não enxergar certo problema”. O meu contracheque é pago pelo Estado Brasileiro, o que me dá liberdade para defender o que eu entendo ser os interesses gerais da sociedade brasileira. Claro que posso estar errado, pois não tenho o dom da onisciência. Mas sei de que lado estou. E certamente não é do lado dos rentistas.