Reflexos das desigualdades de gênero, raça e social no mercado de trabalho

Em evento no Cofecon, Shirley Basílio e Lucilene Morandi enfatizaram a importância da rede de apoio e do Estado de bem-estar social para garantir a plena participação feminina no mercado de trabalho

De que forma se deu a luta por direitos das mulheres? Como as diferenças de gênero impactam a produção científica? Por que, mesmo tendo mais escolaridade, elas ainda têm rendimentos, em média, 21% menores? E qual a importância da rede de apoio para vencer hoje? Estas e outras questões foram discutidas em um evento promovido pelo Cofecon no dia 14 de março, às 17 horas, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Participaram do debate as economistas Shirley Basílio e Lucilene Morandi.

Shirley Basílio

Shirley iniciou sua fala apresentando alguns dados dos alunos de economia e da população brasileira com recorte de gênero e raça. “Apenas 17% dos cargos de CEO são ocupados por mulheres – e destas, 75% são brancas e apenas 18% são negras. Este número é constrangedor”, apontou a economista. “Se formos olhar na nossa profissão, veremos que não é só a questão da oportunidade, também tem a questão da liderança. O desafio de trabalhar com essa pauta da diversidade, tanto de gênero quanto de raça, não pode ser um modismo. É possível mudar essa cultura, mas leva tempo”.

A economista contou sua trajetória, com 44 anos dedicados ao Grupo Sílvio Santos. “Escolhi o curso de economia porque ele iria me abrir portas para transitar dentro do grupo, dentro de diversos negócios”, contou Shirley. “Sou vista como uma exceção porque esta não é a realidade das mulheres. Elas têm que escolher entre a maternidade e a carreira. Sempre tive uma rede de apoio, meu marido me ajudou, tive apoio da minha mãe e minhas irmãs para cuidar dos meus filhos”.

O Grupo Sílvio Santos tem uma gestão familiar. Por isso, afirma a economista, havia uma maioria de homens nas mesas de reunião.

“Poucas mulheres. Mulher negra, nenhuma. Isso me chocava. Eu tinha o peso de estar ali não só por mim, mas para representar uma comunidade. Se para chegar a cargos de liderança a mulher branca precisa quebrar um teto de vidro, para a mulher negra este teto é blindado”, pontuou.

“Fui me capacitando, me aprimorando e abraçando as oportunidades que surgiram. É desta forma que batalhamos para conseguir nosso espaço. Com educação contínua, cursos, workshops e uma rede de relacionamentos e de apoio para reduzir a sobrecarga. Sem esta rede, talvez eu não conseguisse metade do que consegui”.

Por fim, Shirley aponta que as empresas estão valorizando mais a diversidade. “É o que eu desejo, principalmente para a nossa profissão, porque a inclusão cria ambientes mais inovadores, nos quais o resultado é maior”.

Lucilene Morandi

“As mulheres perceberam que para ter independência e autonomia de decisão, precisariam ter, primeiro, cidadania. A primeira luta feminista foi a luta das sufragistas”, iniciou a economista Lucilene Morandi, professora da Universidade Federal Fluminense. “Muito da história das mulheres está apagada. Em 1791, Olympe de Gouges, em plena revolução francesa, elaborou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A carta foi lida na Assembleia Nacional, mas foi condenada e ela foi condenada à morte. Este trabalho foi ignorado política e academicamente e só foi redescoberto em 1986”.

A segunda luta por direitos e por maior liberdade foi pela educação:

“Até 1961 as mulheres, no Brasil, tinham currículos diferenciados e aprendiam menos matemática. Havia textos tentando explicar que era uma perda de receita pública ensinar mais do que o básico”, comentou a economista.

A partir da década de 1980, a quantidade média de anos de escolaridade das mulheres superou a dos homens. Já na década de 1990, as mulheres passaram a ser maioria no ensino superior. “Mas ainda há cursos feminilizados ou masculinizados. Nas exatas, as mulheres são minoria. Nos cuidados, são maioria. Na saúde elas estão em funções como auxiliar de enfermagem e enfermeiras e, mesmo quando são médicas, elas têm rendimentos menores”.

Lucilene também trouxe dados de produção científica. Em 2022, elas eram 49% das autoras ou coautoras de trabalhos científicos (contra 38% em 2002), com este índice caindo para 45% nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática. “Mas a participação feminina diminui conforme a carreira avança. Entre cientistas jovens, elas são 51%, mas com mais tempo de carreira este índice cai para 36%”, explicou. “Fico preocupada quando entro numa loja de brinquedos, porque vejo que há uma seção para meninos e outra para meninos. Na de meninas tem bonecas e brinquedos similares; na de meninos, aviões, tratores e outros. As mulheres são educadas para o lar, o interior e o cuidado; os homens são educados para conquistar o mundo e lutar da porta para fora”.

Ao apresentar um gráfico com a diferença de rendimentos entre homens e mulheres (21% em 2022), ela questionou o motivo se, segundo a teoria econômica, o rendimento reflete a qualificação. “As mulheres têm mais anos de estudo, são maioria, o que explica essa diferença? Uma parte tem a ver com o preconceito de olhar para a mulher como cuidadora, feita para o lar. Mas quando se dá espaço às mulheres, elas avançam”, comentou. “Os homens têm maior participação na força de trabalho. A pesquisa da economia feminista vai explicar estas diferenças”, apontou.

O nível de ocupação entre mulheres e homens com filhos também varia. Entre os que não possuem filhos, 82,8% estão ocupados. Entre os que possuem filhos, este número sobe para 89%. Os índices das mulheres para as mesmas situações são de 56,6% e 66,2%, respectivamente.

“Para o homem, a criança é um prêmio, e para a mulher é um custo, ela perde participação no mercado de trabalho. Isso lhe tira rendimentos e autonomia”, critica.

“A violência de gênero em muitos casos tem a ver com a mulher ter uma criança pequena e não conseguir sair deste casamento abusivo. Com independência econômica ela sai”.

Ao abordar o trabalho doméstico, a quantidade de horas médias das mulheres é de 22, contra 10 dos homens. “Não importa se ela é cônjuge, enteada, filha ou outra condição, elas sempre têm mais horas”, argumentou. “O trabalho de cuidado é diário. Requer tempo e hora. A criança tem que estar na escola no horário e precisa se alimentar e tomar banho antes. Não é um trabalho que a mulher faz somente se quiser. A sociedade a vê como responsável”. Paralelamente a este dado, Lucilene mostrou que as mulheres estão em mais trabalhos de tempo parcial do que os homens, “o que significa menor rendimento médio e aposentadoria”.

Por fim, a economista apresentou uma tela com os 5 R referentes ao cuidado: Reconhecer (que o cuidado faz parte da vida das pessoas, visibilizar, valorizar e divulgar), Redistribuir (entre homens e mulheres e desfamiliarizar), Reduzir (o peso dos serviços sobre as mulheres), Recompensar (com direitos, porque pessoas que trabalham com cuidados recebem menos) e Representar (garantir voz e participação nas decisões sobre cuidados).

Comentários

O evento teve apoio do Corecon-BA e sua presidente, Isabel Ribeiro, comentou que:

“é doloroso falar de um país com tanta gente rica e tanta desigualdade. Estou tentando desde o dia 8 celebrar o Dia Internacional da Mulher, mas parece que todas as estatísticas que vemos vêm para nos machucar”.

Ela apontou que a Câmara de Vereadores do município de São Paulo possui uma Comissão da Mulher formada apenas por vereadores homens.

Luciana Acioly, presidente do Corecon-DF (também apoiador do evento), falou que o setor financeiro é um dos lugares mais demorados para as mulheres ascenderem. “Nos bancos que fazem fusões, escriturações e outros, a participação das mulheres é muito pequena. Em entrevistas para cargos de CEO, 23% das mulheres disseram que perderam oportunidades de trabalho por terem filhos; 17%, por estarem grávidas; 40% afirmaram que foram perguntadas se foram perguntadas, de um modo ou de outro, se pretendiam ter filhos num futuro próximo”, afirmou. “Nossa bolsa de valores tem 423 empresas e 61% delas não têm nenhuma mulher na diretoria estatutária”.

Luciana também comentou que a cobertura do Estado de bem-estar social faz com que a mulher se liberte em relação ao trabalho doméstico e outras cargas.

“Quando morei na Inglaterra, fui produtiva como nunca. Meus filhos tinham escola integral, eu estava num lugar seguro. Sem apoio do Estado, não tem arranjo familiar que dê conta de tanta responsabilidade”.