Lula contra a Fada da Confiança

  • 25 de novembro de 2022
  • Artigo

Artigo de opinião publicado originalmente na Carta Capital. Por Luiz Gonzaga Belluzo e Pedro Paulo Zahluth Bastos.*

Após a eleição que salvou a democracia, Fraga, Malan e Bacha destampam o pote de certezas dos defensores do lucro sem-fim

Sábios? Diante do pouco-caso com os pobres por parte do governo Bolsonaro, o trio parte com redobrada confiança para defender a austeridade fiscal e o teto de gastos – Imagem: Contraf/CUT/Seeb, Ernani D’Almeida, Solange Macedo e Brazilian American Chamber Of Commerce

A carta ao presidente Lula subscrita por três economistas de renome, certo prestígio acadêmico e enorme acolhimento nos mercados, suscitou um maremoto de críticas de outros economistas também reconhecidos e respeitados.

Na posteridade da eleição presidencial que salvou a democracia, a visão convencional retomou a iniciativa na palavra de Arminio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha. Com autoconfiança redobrada, a trinca empenhou-se na defesa da austeridade fiscal e do teto de gastos.

A carta motivada pela crítica do presidente Lula ao teto de gastos destampou o pote que abriga as certezas dos sábios da Crematística. Exemplo contundente é o artigo do colunista da Folha de S.Paulo Fernando Canzian.  Afirma que “Lula larga na contramão do que levou ao sucesso de seus dois governos”, que o jornalista atribui a uma única variável, o superávit fiscal primário.

Com desenvoltura desconcertante, Canzian assinala que “todos os indicadores pioraram” desde 2015 e atribui a decadência ao governo Dilma Rousseff, que “deixou de fazer superávits, a partir de 2014”.

Prossegue: “É bastante provável que, se o Brasil tivesse mantido as contas em ordem, a queda da renda e o aumento da informalidade não teriam sequer existido nos últimos anos. Pois foi quando empresários e o mercado passaram a apostar, a partir de 2014, que haveria um estouro na dívida pública, que eles reduziram drasticamente investimentos no Brasil”.

Ou seja, nada do que aconteceu de desastroso na gestão da economia desde 2015 é responsabilidade da política “fiscalista” de Joaquim Levy nesse ano, agravada pelo teto de gastos em 2017. Tampouco figuram nas sabedorias de Canzian a crise da economia mundial de 2008, a queda do preço das ­commodities em 2014-2015, ou a pandemia.

O artigo assegura que o aumento da relação dívida pública/PIB leva necessariamente a aumento da inflação e de juros da dívida pública. Gostaríamos de saber em que mundo viveu o jornalista desde 2008, período que refutou cabalmente as relações entre dívida e juros, ou entre dívida e inflação, que ele imagina existirem. A dívida pública explodiu em vários países por causa da retração do gasto privado, e da necessidade inadiável do gasto público para evitar o colapso do capitalismo em 2008. Até 2021, juros e inflação chegaram a mínimos históricos, com juros reais negativos por muitos anos, inclusive no Brasil de Bolsonaro.

Não espanta que Canzian recomende que se alcance o superávit primário com corte de gastos, mesmo que isso prejudique o crescimento do PIB. Esse foi o cerne da política fiscal executada em 2015. No crepúsculo de 2014, os formadores da opinião midiático-financeira propalavam o desastre: a economia cresceu pouco (0,5%) e o déficit primário chegou a 0,6% do PIB em 2014.

Keynes. Contra a sabedoria dele, economistas apostam em argumentos mágicos – Imagem: The National Archives UK

A reeleição de Dilma levara à gritaria: desastre! Tanto clamaram pelo desastre que a política econômica da turma da caixinha foi executada pelo ministro Levy. Aberta a caixinha de Pandora, monstros ficaram à solta: o choque de tarifas voou lado a lado com o choque de taxa de juros, de mãos dadas com forte desvalorização cambial.

A interação entre choque de tarifas, subida da taxa de juros, desvalorização do real e corte do investimento público determinou elevação da inflação, contração do nível de atividade e restrição do crédito. O encolhimento do circuito de formação da renda levou inexoravelmente à derrocada da arrecadação pública, produzindo o déficit fiscal que se queria evitar.

As fábricas se encharcam de capacidade ociosa. Endividadas em reais e em ­moeda estrangeira, as empresas buscaram ajustar balanços diante da perspectiva de queda da demanda. Para cada uma delas é racional dispensar trabalhadores e procrastinar investimentos que geram demanda e empregos em outras empresas. Para cada banco individualmente era recomendável subir o custo do crédito e racionar a oferta de novos empréstimos.

Os consumidores, bem, os consumidores reduzem gastos. Uns, desempregados, outros com medo do desemprego. O comércio capota, reduz encomendas a fornecedores que acumulam estoques e cortam mais a produção.

Demissões disparam. A arrecadação tributária míngua, sugada pelo redemoinho da atividade em declínio, mas a dívida pública cresce sob o impacto dos juros reais e engorda mais os cabedais do rentismo caboclo.

O mergulho depressivo iniciado entre o crepúsculo de 2014 e a aurora de 2015 pode ser apresentado como exemplo do fenômeno que as teorias da complexidade chamam de “realimentação positiva” ou, no popular, quanto mais cai, mais afunda.

O jornalista não diz por que Fraga, ­Malan e Bacha imaginam que a busca do superávit primário tudo curaria. O argumento é simples, talvez simplório. Seu centro é a Fada da Confiança, a ideia de que o investimento privado não é desanimado pela redução da demanda trazida pela “austeridade” fiscal, mas animado por suposta redução da relação dívida pública/PIB com o corte do gasto público.

Antes da Fada da Confiança, os economistas respeitavam uma verdade contábil: o déficit público ajuda o superávit do setor privado, pois encomendas públicas maiores que os impostos se transformam em salários e lucros (em parte no exterior).

O contrário também é verdadeiro: o superávit público é a outra face do déficit do setor privado. Sem isso, não se explica o superávit fiscal no governo Lula, onde (pasmem) a taxa de crescimento do gasto público foi maior do que no governo Dilma, quando o gasto cresceu menos do que quando Malan foi ministro da Fazenda! A variável que os sabichões escondem é a dinâmica da arrecadação tributária, que depende e se correlaciona positivamente com o crescimento do PIB, das exportações e do endivididamento privado.

Acontece que tanto a fase de expansão das exportações líquidas quanto a capacidade de endividamento do setor privado se esgotavam em 2014, explodindo em 2015, quando Levy procurou reduzir a dívida pública exatamente no momento em que o setor privado também tentava fazer a mesma coisa, ou seja, reduzir seu endividamento. Deu no que deu.

A mágica da Fada da Confiança já foi desmascarada.

Contra a sabedoria de Keynes e as tautologias da contabilidade social, o argumento mágico da Fada da Confiança é que os empresários não se importam com a queda da demanda corrente e de seus lucros gerada pela busca do superávit público pelo corte do gasto. Supõe-se que, como os economistas neoliberais, os empresários imaginariam magicamente que, no futuro longínquo, haveria queda de impostos que compensaria a redução dos lucros atuais com lucros futuros. Esperando isso, reagiriam ao corte do gasto público e da demanda agregada aumentando o investimento privado desde logo, a despeito do crescimento da capacidade ociosa e da queda dos lucros. E isso restauraria o crescimento econômico.

É claro que a Fada da Confiança é apenas advocacia ideológica contra o gasto público, sem ser fundamentada em qualquer evidência empírica sólida. Pelo contrário, muitos economistas refutaram a Fada da Confiança no mundo inteiro, inclusive no FMI e no Banco Mundial. Os testes recorreram a uma amostra grande­ de países que retornaram à austeridade em 2010 depois dos pacotes de gasto público deficitário que, em 2009, salvaram a economia mundial do corte desesperado do gasto privado e do crédito bancário a partir de 2007.

Nem os economistas imaginativos da Fada da Confiança negam que, em 2008, era necessário o remédio keynesiano que, com déficit público e redução dos juros (a despeito do forte aumento da dívida pública!), evitou a quebra de empresas e o desemprego gigante, restaurando gradualmente o superávit privado. Assim repetiam a lição aprendida na década de 1930, quando Keynes defendeu que, se o investimento público deficitário conseguisse recuperar até elevar o investimento privado, o aumento futuro da arrecadação tributária levaria à redução da relação dívida pública/PIB.

O consenso keynesiano não durou. A partir de 2010, os cultuadores da Fada da Confiança foram liderados por estudo já desacreditado de Kenneth Rogoff, segundo quem ultrapassar um limiar da relação dívida pública/PIB levaria a uma redução do crescimento do PIB. Os sabichões pressionaram pela redução do gasto público com grande apoio no jornalismo econômico, muitas vezes com sucesso, como no Brasil em 2015.

A cura milagrosa da Fada da Confiança, porém, foi testada e refutada pelos fatos. Os testes mostraram que a “austeridade” fiscal reduz o crescimento do PIB, e que os países mais “austeros” tiveram menor crescimento econômico.

Isso não impede que os sabichões proponham ao novo governo a cloroquina fiscal em uma economia que não se recuperou da virada brusca para a austeridade em 2015 e do impacto devastador da pandemia, na qual miséria, endividamento das famílias e inadimplência são elevados, e em que o varejo e a produção industrial ainda patinam, a despeito do impulso gerado pelas exportações.

A grande questão é: a economia brasileira tem o vigor necessário para aguentar o corte abrupto do gasto público em 2023, depois dos gastos extrateto aprovados para reforçar as chances eleitorais de Jair Bolsonaro? Vale a pena arriscar o fracasso da frente antifascista ao imolá-la no altar da austeridade, como nos anos 1930?

Arriscamos três previsões. Primeiro, Lula não é bobo e não se deixará dobrar pelo terrorismo do mercado financeiro e pelo charlatanismo de seus lobistas. Logo, o povo brasileiro não precisa nem deve ser laboratório de mais um teste da Fada da Confiança. Segundo, isso não assegura o início de longo ciclo de expansão, mas evita o retorno da recessão em 2023. Terceiro, os sabichões vão esperar a próxima oportunidade para emplacar a austeridade em meio a uma recessão. Se tiverem sucesso político, fracassarão na economia, porque a austeridade não é expansionista. Porém, vão mais uma vez culpar a doença do gasto social exagerado pelo resultado desastroso do remédio milagroso que buscarão empurrar goela abaixo do povo brasileiro. Felizmente, não será desta vez.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

*Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor da Unicamp. Foi professor visitante na UC Berkeley (EUA).