OCDE virou uma Otan da economia mundial?

Debate abordou vantagens e desvantagens da adesão brasileira à organização

Daniel Rittner – Valor Econômico*

O economista Otaviano Canuto era secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda em 2003, no começo do governo Lula, quando foi convidado para uma palestra sobre o Brasil na sede da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris. “Lá eu me dei conta de que a grande razão do convite era me usar como veículo para mandar uma mensagem ao governo brasileiro”, relembra Canuto, que depois se tornou diretor-executivo do Banco Mundial e do FMI. Na época, o Chile estava postulando sua entrada. Seria o primeiro país sul-americano e o segundo da América Latina, na sequência do México. O então secretário-geral da instituição o chamou para uma conversa e abriu o jogo: “Nós dissemos para o Chile que preferiríamos o Brasil, mas agora precisamos saber se vocês têm interesse”.

De volta a Brasília e portador do recado, Canuto fez consultas na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto. Ouviu um não e transmitiu a resposta negativa para Paris. Não só o Chile, mas Colômbia e Costa Rica entraram na OCDE. Anos mais tarde, no governo Macri, a Argentina pleiteou uma vaga.

Simpático à adesão no Brasil, Canuto conta ter sofrido com o fogo amigo. “O Itamaraty do período Lula, Celso Amorim, foi muito peculiar. Não teve nada parecido. Eu não era bem-visto pela turma que comandava o ministério. Recebi, pelo porta-voz informal deles, artigos na imprensa que incluíam a mim e os ministros Roberto Rodrigues [Agricultura] e Luiz Fernando Furlan [Indústria e Comércio] como quinta-colunas”, diz o ex-secretário, com uma longa risada enquanto rememora.

Da rejeição inicial, o Brasil foi pouco a pouco se aproximando da OCDE. Nada ocorreu de uma hora para outra, como às vezes parece. O próprio governo Lula, em 2007, levou o país ao status de parceiro-chave da entidade – junto com China, Indonésia, Índia e África do Sul. Em 2015, ainda sob Dilma Rousseff, um acordo de cooperação previa o aumento da presença brasileira nos comitês da OCDE e indicava um estreitamento das relações.

Em 2017, Michel Temer enviou carta pedindo formalmente para dar início ao processo de adesão. Por divergências entre Estados Unidos e União Europeia sobre o ritmo de expansão da OCDE, não houve avanços. Jair Bolsonaro dobrou a aposta. Transformou uma declaração de apoio da Casa Branca no principal objetivo de sua visita oficial a Washington em 2019. Sem entender bem as razões de tanta ansiedade, os auxiliares de Donald Trump no USTR ainda arrancaram uma contrapartida de Paulo Guedes e Ernesto Araújo: o Brasil abriria mão do tratamento como país em desenvolvimento na OMC.

Em janeiro, a OCDE aceitou finalmente iniciar o processo de adesão, que demora sempre alguns anos. O Brasil incorporou voluntariamente 104 dos 251 instrumentos recomendados ou exigidos pela instituição para tornar-se membro pleno. Entre os seis países na corrida, é quem está mais adiantado. Os demais candidatos são Argentina, Peru, Croácia, Romênia e Bulgária.

Um debate sobre vantagens e desvantagens de um ingresso na OCDE foi feito, na sexta-feira passada, pelo Conselho Federal de Economia (Cofecon) – onde Canuto relatou aquele episódio. A discussão está disponível no canal do Cofecon no YouTube.

Como preâmbulo, a fim de evitar um viés em qualquer conversa sobre a OCDE, é pouco adequado usar o termo “clube dos países ricos” – como muitos na imprensa e até na academia referem-se com frequência à entidade. Com seus sócios da América Latina e do Leste Europeu, isso nem soa mais tão verdadeiro. Mais preciso seria classificá-la como um clube de boas práticas internacionais.

Isso posto, o debate sobre vantagens e desvantagens da entrada na OCDE mistura-se com especulações em torno do que ocorreria em um eventual governo Lula 3.0, pois o petista lidera as pesquisas eleitorais. A ausência de um porta-voz para assuntos econômicos em geral torna mais difícil ter uma ideia do que faria o PT. Amorim, um auxiliar ainda bastante ouvido por Lula em política externa, já disse que não enxerga grandes benefícios na entrada do Brasil.

Um dos participantes do debate no Cofecon, Adhemar Mineiro – assessor do Dieese por 26 anos e pós-doutorando na UFRJ – acredita que Lula de volta ao Planalto deixaria o processo de adesão à OCDE em “banho-maria”. Mais ou menos como fez o peronista Alberto Fernández, na Argentina, com o pedido que herdou de Macri. Para ele, há que se ter muito cuidado com limitações a políticas nacionais.

Júlio Miragaya, ex-presidente do próprio Cofecon e da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), vê perigos. Ele teme que a entrada na OCDE incorra em restrições à futura capacidade de fomentar conteúdo nacional em compras públicas, adotar estratégias de substituição de importações ou políticas contracíclicas de gasto.

Toma-se emprestado de Miragaya o questionamento que intitula a coluna. Ele lembra a incorporação pela Otan de 14 países da Europa Oriental e a implementação de programas como o “Diálogo Mediterrâneo” (Israel e países da África setentrional), a “Cooperação de Istambul” (países do Golfo Pérsico), a cooperação ANZUS (Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia) e até com a Colômbia.

“Se o propósito da ampliação da Otan foi permitir a ação militar para além do Atlântico Norte (Iraque, Afeganistão, Somália e Líbia) e ampliar o cerco sobre as duas potências rivais dos EUA (China e Rússia), o objetivo de ampliação da OCDE é enquadrar as políticas macroeconômicas dos países aderentes”, avalia Miragaya.

Para o ex-secretário Canuto, a preocupação com limitações às políticas nacionais é exagerada porque as normas da OCDE não são vinculantes e impeditivas de nada, como acordos com o FMI ou compromissos no âmbito da OMC. De forma bem-humorada, ele compara a instituição com os Alcoólicos Anônimos, um grupo de suporte cujos membros vão compartilhando experiências e estimulando políticas públicas exitosas. Mas não há que se falar em restrição para nada, afirma Canuto, nem mesmo para recuos na democracia. Eis que a Hungria de Viktor Orbán e a Polônia do PiS (Lei e Justiça) continuam lá na OCDE, sem serem perturbadas.

Um aspecto prático: apenas 22 dos 186 fundos globais de investimento mais importantes do planeta já fizeram algum desembolso no Brasil, segundo o Ministério da Economia. A maioria não pode, por seus estatutos, aplicar em países fora da OCDE ou que não possuem o selo de “investment grade”.

*Daniel Rittner é repórter especial em Brasília e escreve às quartas-feiras
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