Entenda por que o ‘teto da dívida’ não é uma boa alternativa

Artigo originalmente publicado no Estadão 

O fato de nossa dívida pública ser indexada a deixa com tendência de elevação inercial: ela cresce, independentemente da ocorrência de déficits

Diante da crescente percepção da total inviabilidade da Emenda Constitucional 95 (EC), o teto de gastos como parâmetro de regra fiscal, surge a necessidade da definição de novos paradigmas. Como apontei em artigo anterior, no Brasil, na prática, o teto de gastos transformou-se em “teto de investimentos”. Uma das propostas na mesa é a sua substituição por teto de endividamento, tendo como exemplo os EUA. Por que, no Brasil, essa não é uma boa ideia?

O estoque da dívida pública dos países equivale aos déficits acumulados ao longo dos anos. No conceito nominal, esses déficits incluem as despesas com o pagamento de juros sobre essa mesma dívida. As dívidas são recorrentes na maioria dos países.

Até mesmo países considerados ricos, ou desenvolvidos, detêm dívidas públicas elevadas. É o caso, por exemplo, da França, com 116% do PIB; do Canadá, com 118%; da Itália, com 156%; ou o mais expressivo, o caso do Japão, cuja dívida atinge 266% do seu produto.

Nos últimos dois anos, a dívida global dos países aumentou muito em razão dos gastos e do efeito da pandemia de covid-19. O Fundo Monetário Internacional (FMI) apontou que, pela primeira vez, a dívida pública global cresceu, voltando a atingir níveis só observados nos primeiros anos do pós-Segunda Guerra Mundial.

A dívida pública federal brasileira atingiu R$ 5,6 trilhões em 2021, representando 80,3% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso não é uma peculiaridade brasileira. Mas o que de fato chama a atenção no nosso caso são as distorções, como a “duração” dos títulos (prazo de vencimento muito curto) e o elevado custo de financiamento. As despesas totais com pagamento de juros sobre a dívida pública aumentaram de R$ 312,4 bilhões, em 2020, para R$ 448,3 bilhões, em 2021, o equivalente a cerca de dez vezes o orçamento para investimentos públicos.

As despesas com o pagamento de juros sobre a dívida pública brasileira são muito superiores às médias internacionais – mesmo aqueles países que têm dívidas públicas elevadas. No acumulado dos cinco anos entre 2017 e 2021, o montante de pagamento de juros sobre a dívida pública brasileira chegou a quase R$ 2 trilhões. Trata-se de uma permanente transferência de renda de toda a sociedade para os credores da dívida e o sistema financeiro, que detêm grande parte dela e fazem a sua intermediação.

O fato de nossa dívida pública ser fortemente indexada – ou seja, atrelada às variações das taxas de juros (Selic e prefixadas), da inflação e da taxa de câmbio – a deixa com forte tendência de elevação inercial. Ela cresce, independentemente da ocorrência de déficits. Da mesma forma, a relação dívida/PIB tende a se elevar, quando a atividade econômica não cresce, como tudo indica que vai ocorrer em 2022. Portanto, fixar um teto para este indicador vai mais atrapalhar do que ajudar nosso desenvolvimento.

ANTONIO CORRÊA DE LACERDA É PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DE ECONOMIA (COFECON), PROFESSOR-DOUTOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA POLÍTICA DA PUC-SP, É AUTOR DE ‘O MITO DA AUSTERIDADE’ (CONTRACORRENTE).