Artigo – Educação a Distância ou Distância da Educação no Pós-Pandemia?

Por Prof. Dr. Mário Sérgio de Moraes

Este texto é escrito durante a pandemia de Covid-19. Neste cenário de incertezas é problemático analisar qualquer tema de forma definitiva, ainda mais quanto ao futuro da Educação e ao EAD (Ensino a Distância). Igualmente, outros assuntos como negócios, turismo, consumo das famílias, segurança pública, bolsa de valores e desemprego também geram mais especulações do que afirmações categóricas sobre quanto seremos afetados.

Ensino a distância e/ou presencial? Quais os acréscimos ou déficits na educação pós-pandemia? Ainda pouco sabemos – de forma definitiva – da contribuição das “salas virtuais” para o aprofundamento do conhecimento para as próximas gerações. Assim, não farei conclusões categóricas sobre tema proposto. Diante da instabilidade do cenário existente e da ambivalência do tema, estaremos à vontade para criticar amanhã o que defendermos hoje.

O pesadelo

O impacto da pandemia estraçalha a economia: projeções de queda de 8 a 10% no PIB para o ano de 2020; desemprego de mais de 8 milhões de pessoas somados aos outros 12 milhões já existentes; aumento de 7% no número dos chamados desalentados (pessoas que desistiram de procurar emprego), chegando a 5 milhões. Pelas contas do Banco Mundial passaremos de 41,8 milhões de brasileiros pobres em 2019 para 48,8 milhões no ano de 2020. Pela primeira vez, ficam desocupados um pouco mais da metade dos trabalhadores brasileiros.

No campo escolar houve a paralisação de instituições públicas e privadas. Em março decretou-se, pelos governos municipais e estaduais, a suspensão das aulas em todos os estados. Em termos federais, no dia 01 de abril de 2020 foi estabelecida a Medida Provisória nº 934/2020, que dispensou as instituições de ensino de Educação Básica de cumprirem os 200 dias letivos determinados pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases). Posteriormente, todas as universidades suspenderam seus ensinos presenciais e algumas recorreram aos recursos disponíveis no EAD.

O drama é maior porque o fechamento de escolas afetou de forma desigual as crianças. A maioria não possui as oportunidades e as ferramentas de acesso ao ensino remoto em substituição às aulas presenciais para continuar aprendendo durante esta pandemia.

Retrato do Brasil

O maior problema brasileiro é a horrível desigualdade de renda. Em 2017, segundo IBGE, 10% dos brasileiros detinham 43,3% da renda total do país. Na outra ponta, os 10% mais pobres detinham apenas 0,7%. E segundo pesquisa do estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, em 2015 os 10% mais ricos da população tiveram aumento de 3,3% da renda acumulada e os 40% mais pobres queda de mais de 20%.

Quando surgiu a pandemia de Covid-19, o problema da desigualdade potencializou-se no Brasil. Pesquisa do Datafolha, apresentada em janeiro de 2021, apontou que aproximadamente 4 milhões de estudantes brasileiros entre 6 e 34 anos deixaram as aulas em 2020, o que significa 8,4% de evasão escolar. Na educação básica, a taxa é ainda maior: 10,8% dos alunos largaram a escola em 2020, sendo 4,6% no ensino fundamental. Em termos de comparação, em 2019 as taxas oficiais de evasão foram de 4,8% no ensino médio e de 1,2% no fundamental.

Pior: o percentual de alunos sem motivação para estudar passou de 46%, em maio, para 54% em setembro. A dificuldade em se organizar para estudar em casa também aumentou de 58% para 68%, no mesmo período, de acordo com a Fundação Lemann e com o Itaú Social.

Diante desta tragédia, qual foi a solução adotada por 90% das escolas? A implantação das tecnologias digitais, salas virtuais, o mundo on-line. Qual será a consequência disto? A resposta ouvida por quase todos: “Isto veio para ficar, crescerá o EAD”.

O objetivo destes comentários é questionar de que forma isto será implantado. O problema não é quanto à efetivação – imprescindível – mas à maneira como será discutida e absorvida esta tecnologia no campo da Educação. Considerando a realidade de um país que reproduz a desigualdade como engenharia de poder, como será politicamente sistematizado o mundo on-line no sistema escolar?

Num futuro próximo, o aprendizado será o resultado, além do papel, da efetivação através do computador, do celular e dos iPads. Professores precisarão se reinventar, alguns sendo edutubers. Pais terão que se readequar no acompanhamento de suas crianças no trato do mundo virtual, aumentando responsabilidades com o futuro. Nas políticas públicas, novas matérias aparecerão incentivando a interdisciplinaridade e a produção de conteúdos mais amplos. Aprender não vai ser sinônimo somente de ir à escola, sentar na cadeira e ouvir o professor que escreve na lousa com giz, ensino que remonta ao século XIX.

Será preciso um acompanhamento virtual ao lado do presencial. Isto não prejudica o aprendizado, nem o computador pode ser demonizado por problemas de déficits de atenção! Ninguém defende, como os ludistas do século XVIII, que estas máquinas serão responsáveis por futuros desajustes escolares. No entanto, existem problemas seríssimos a que poucos estão atentos quanto a conceituação, implementação, novos formatos pedagógicos e consequências sociais.

O primeiro diz respeito à filosofia que orientará a concretização on-line, isto é, de que maneira salas virtuais estarão alinhadas à transmissão de valores do conhecimento. Na implementação, responderemos quais grupos sociais poderão “comandar” este processo. O terceiro aspecto é a instrumentação necessária aos objetivos apontados. E a última: salas virtuais poderão potencializar ou não as desigualdades sociais.

Há aproximadamente 10 anos o EAD vem sendo implementado. As universidades públicas e privadas estimulam este formato de aprendizagem. Até aqui, este modelo virtual no mundo acadêmico é visto pelos professores e alunos, acertadamente ou erroneamente, como um ensino auxiliar, pouco influente quanto à avalição do aprendiz. Funciona como complementação ou como recheio secundário das aulas presenciais. Seu crescimento é exponencial: de acordo com a Abed (Associação Brasileira do Ensino a Distância), esta forma de ensino passou de 7.773.828 de brasileiros em 2017 para 9.374.647 em 2018 – um crescimento de 17%.

No entanto, muitas dúvidas surgem: será que apenas os números revelarão os dados qualitativos desta forma de transmissão do saber? Como analisaremos a profundidade da transmissão de valores – principalmente o de cidadania – no mundo virtual? Cooperará para uma qualificação adequada ao mercado de trabalho? Funcionará como elemento complementar ao ensino presencial?

Educação a Distância ou Distância da Educação?

Se entendermos por educação a transmissão de valores, cultura, comportamentos, linguagens de gerações a outras gerações, dentro ou não de salas de aulas (pais, livros, cinemas, esportes, também são responsáveis) e, de outro lado, o termo “a distância” indicando separação física no espaço e no tempo mediada por tecnologias de informação, perguntamos: será que estes dois conceitos educação/distância não se contrapõem no campo escolar? Ou mesmo o conceito de ensino, como método de transmissão do saber, é possível pelo modo virtual? Será que não possuem – a educação e a virtualidade – linguagens diferentes?  

Como se efetiva a linguagem da Educação? O fluxo mais profundo do conhecimento absorve-se na relação direta entre o professor e o aluno de diversos modos. Pelo primeiro, na entonação da voz, na antecipação de uma pausa, nos gestos das mãos, na improvisação. E, evidentemente, na empatia entre os participantes, semeando a inteligência racional e a emocional. Pelos alunos, na recepção do conteúdo, criando-se diversas “falas” que se somam numa partitura única, baseada nas relações pessoais, em tempo real, o que permite construir confiança mútua por meio da leitura de sinais das expressões vocal e corporal de todos por todos, pois estão juntos vivendo uma mesma experiência na recepção de diversos olhares, nos risos em comum, nas distintas sobrancelhas arqueadas que indicam ao mestre para onde dirigir sua narrativa.

Na virtualidade o “mundo” é diferente. Por mais que a imagem queira nos representar na interação com as pessoas, a verdade é que estamos olhando para uma tela, antes do próprio interlocutor. É sempre uma relação dissociativa, pois os espaços e as experiências compartilhadas são radicalmente diferentes. Uma pessoa pode estar na cozinha, outra no quarto, fulano dirigindo, sicrano no escritório. Enfim: cada pessoa num contexto social e emocional totalmente distinto.

No on-line a linguagem é muito diferente. As pessoas estão presas em quadradinhos numa tela e blindados numa pequena moldura. Por este formato não se dá conta das interações de mãos, dos gestos, dos sorrisos, das espontaneidades que acontecem em sala de aula. Numa reunião virtual cada qual imprime uma conexão diferente e as reações não chegam no mesmo “timing”, chegam embaralhadas e não causam uma “sinfonia coletiva”.

Por outro lado, a linguagem virtual tem as suas especificidades. Suas características são a instantaneidade, a rapidez e a superficialidade pela velocidade da sua informação. Suas positividades vêm pelo maior alcance de espectadores, pelas possibilidades de diversas imagens fornecidas pelo Youtube, pela captação de dados possibilitando maior número de informações num banco de dados. Concluindo: traz informação, mas não necessariamente maior conhecimento.

Enfim, num processo de comunicação pelo mundo virtual o emissor e o receptor não leem com precisão as mensagens emitidas. Em primeiro lugar, o emissor não sabe como o receptor reage à sua mensagem e, por sua vez, o receptor também vê um minúsculo e perturbador buraco negro na tela do computador, procurando uma sensação de “olho no olho” que inteiramente não se efetiva. Um descontrole que não se completa.

O resultado disto, depois de algum tempo (bem diferente da aula presencial) é o cansaço, o estresse, a raiva. Surgiu até uma expressão em inglês para definir esse momento: o “zoom fatigue” em referência à plataforma mais popular usada durante estes tempos de epidemia.

Hoje, com o problema da pandemia, o que passou a se chamar de “homeschooling” nada mais é do que um dado emergencial, um arremedo alçado à categoria de educação ou ensino. Basilar e aprendizagem, principalmente a infantil, onde as dificuldades são muito maiores, com a produtividade do home office, nos dá a ilusão canhestra desta proposta. É o neoliberalismo fazendo escola.

Ironicamente, uma comparação da aula presencial com o EAD: existe educação ou ensino “dos pais” a distância? Aprendizado “de sociabilização de pessoas” a distância? Sabor de manga a distância? Beijos a distância? Teatro a distância? Neste último caso sim, mas não é teatro. Havia na TV Tupi nos anos 50 o programa Teatro de Vanguarda, mas já era outra linguagem!

O conhecimento – relacionamento de diversas ciências e artes – é próprio da dinâmica de aula. Como comparação: é possível assistir uma boa aula reproduzida pelo vídeo por mais de 1 hora havendo a mesma disposição de absorção de dados? O resultado fica muito chato.

Concluindo: as duas se complementam, mas não se pode confundi-las. O modo presencial é como um veleiro onde o piloto é o professor percebendo o rumo do vento e indicando aos navegantes, com suas “falas”, a direção. Ele os instrui ao “vivo e em cores”. As salas virtuais são os instrumentos de navegação (bússola, GPS) que simulam para a embarcação o seu destino.

O isolamento e a comunicação visual têm um efeito comparativo com outros comportamentos sociais. Quem tem condições de ficar em casa se tornou dependente dos aplicativos de entrega e do modo delivery. Por exemplo: o garçom do boteco que chamávamos por apelido foi substituído pelo motoqueiro sem nome. Este veio através de plataformas como Rappi e IFood que não foram conectados pelo Zé da Quitanda ou pela Maria do Boteco que ficam a 300 metros da sua casa. Ao contrário, o entregador veio de um comércio mais forte e que está a 10 km do local de moradia. Empresas como Nestlé, JBS e BRF criaram lojinhas virtuais que eliminam os intermediários mais próximos da vivência cotidiana das pessoas.

É possível estancar este processo de despersonalização do relacionamento social? Não sabemos, mas é possível analisá-lo para a compreensão de um futuro ainda pouco visível e tentar modificá-lo dentro dos limites impostos pelo cenário histórico. Não podemos fazer tudo o que desejamos, mas façamos o possível para não aceitarmos a impessoalidade que tentam nos impor.

Assim sendo, a educação (valores de conhecimento) e ensino (método do conhecimento) só podem ser efetivados de forma abrangente de forma primordialmente presencial e com menor ênfase no mundo virtual, pois possuem duas linguagens diferentes.

Para o ensino virtual, eis a pergunta central: quem ou quais grupos sociais irão dirigir esta nova forma de apreensão da realidade? Como o poder público e as escolas particulares comandarão estas implementações? Reproduzirão numa sociedade desigual os valores de dominação? É possível ou não criar “salas virtuais” de resistências com padrões baseados numa pluralidade de percepções?

Temo que o problema educacional se agrave, pois a predominância dos interesses capitalistas – tanto nas escolas públicas como nas particulares – ganha uma hegemonia maior do que os valores do conhecimento e pesquisa. Um exemplo desta filosofia ou empulhação filosófica foi o pequeno artigo publicado na Folha de S. Paulo, caderno Estúdio Folha, no dia 28 de outubro de 2021 que tinha o seguinte título: “Presencial ou a Distância”?

Estar numa sala de aula tradicional ou virtual não interfere na qualidade do curso, desde que alunos e professores estejam adaptados e à vontade com cada uma das modalidades…”

Será isto verdadeiro? Ou este deslize não é apenas um erro e sim um projeto dos “novos tempos”? Creio que este ponto de vista será mais defendido pelas empresas de educação do que aceito pelos professores que realmente conhecem a enorme diferença entre os dois modos de ensino.

Aula a distância, virtual, modo on-line ou ensino sem presença física não se comparam à presencial por razões já explicadas. No entanto, temo que mais uma vez os padrões de lucratividade estejam prontos para amesquinhar o sentido da Educação. Se muito dizem que o modo virtual veio “para ficar”, é ainda oportuno afirmar: qual modo? A valorização do conhecimento ou o adestramento de mão de obra proporcionado pelo ensino mercantilista?