Bidenomics e o Brasil
O Conselho Federal de Economia realizou nesta segunda-feira (29) mais um debate de conjuntura. O tema, desta vez, foi a agenda econômica do governo de Joe Biden – ou, no termo criado em inglês, “Bidenomics”. O debate contou com a presença dos economistas André Roncaglia e Laura Carvalho, além do jornalista Fábio Graner.
O presidente norte-americano lançou uma política econômica com base no gasto público: um programa de estímulos de 1,9 trilhão de dólares; um programa de gastos de 2,3 trilhões em infraestrutura; e um Plano de Auxílio às Famílias Americanas, no valor de 1,8 trilhões. O pacote seria o maior plano de estímulos desde o New Deal – uma série de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937.
O conselheiro federal Fernando de Aquino, coordenador da Comissão de Política Econômica do Cofecon, em sua fala de abertura apresentou a importância do tema. “Tanto pelos impactos que terá na economia brasileira, como pelo exemplo que está dando ao mundo de uma política econômica ativa para enfrentar uma pandemia”, comentou. “Na Academia, em nível mundial, há uma posição predominante de política econômica mais ativa para buscar emprego, produtividade e crescimento. No Brasil esta abordagem ainda não é hegemônica. Diante do plano Biden e outras iniciativas que surgem no mundo, brevemente teremos uma postura de política econômica mais ativa, como o Cofecon vem insistindo há bastante tempo”.
Roncaglia foi o primeiro a palestrar e iniciou citando uma frase de Milton Friedman: “Somente uma crise – real ou percebida – produz mudanças reais. Quando essa crise ocorre, as ações tomadas dependem das ideias disponíveis. Esta, acredito, é nossa função básica: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável”. Contextualizando a frase, Roncaglia argumentou que depois de 40 anos vivendo o que Friedman defendia, o mundo entra numa mudança bastante acentuada, o que permite outras possibilidades de desenvolvimento.
Na sequência, o economista caracterizou a prosperidade, a paz e a proteção contra os desastres planetários como bens públicos globais, produzidos a partir da cooperação entre nações. “Uma prosperidade que seja comum, compartilhada; depois a paz; e a proteção contra os desastres planetários, sejam eles climáticos, sejam eles sanitários, também derivados das questões climáticas”, a firmou Roncaglia.
Na sequência, falou do Bidenomics como “a configuração em políticas econômicas desse conjunto de ideias de que o Estado deve atuar de maneira mais intensa”. E caracterizou os quatro pilares: ressurreição keynesiana (“orientar o investimento da economia na direção de restabelecer e restaurar o emprego e a atividade econômica, porém num direcionamento diferente daquele que o mercado faria”); o retorno da política industrial (complementaridade entre Estado e mercado na geração de inovações e aumento de produtividade, como demonstrou o rápido desenvolvimento de vacinas para Covid); o Estado de bem-estar social verde (que já envolve uma mudança de matriz energética e tecnológica); e o combate à desigualdade excessiva (vista como um risco). “Cabe ao Estado corrigir os excessos do mercado”, pontuou Roncaglia.
Ao abordar os eixos do Bidenomics, utilizou um neologismo para tratar de um deles: “cuidadania”, mistura de cuidado e cidadania. Os outros dois são a mudança tecnológica e a reação à mudança climática. “Cuidadania, uma associação de cidadania com cuidados, tem a ver com a infraestrutura social, com os cuidados de crianças e idosos, renda básica e proteção do emprego”, apontou o economista. “O novo grande bem público é a inclusão digital, caracterizada não só pelo acesso à banda larga, mas a aparelhos que permitem beneficiar-se da inclusão digital. A infraestrutura social é a grande novidade no plano Biden, não só porque seja nova, mas porque está numa posição central. Resta saber se ele conseguirá aprovar o pacote na dimensão que deseja”.
Laura Carvalho iniciou sua fala dizendo que o tipo de programa apresentado no Bidenomics já vinha surgindo em iniciativas mundo afora desde o que foi apresentado como Green New Deal, um conjunto de propostas apresentadas em 2019 que terminou não avançando no Congresso dos Estados Unidos. “Vários países começaram a implementar planos assim antes e depois do surgimento da pandemia. Já tivemos esforços aprovados na Coreia, Alemanha, União Europeia, uma série de planos de recuperação verde, trazendo ao debate global a necessidade do Estado, junto ao setor privado, atuar de forma mais agressiva contra as desigualdades e as mudanças climáticas”, apresentou a economista.
Laura também apontou para o fato de que o combate à desigualdade e o conhecimento necessário para a transição energética têm grande potencial de geração de emprego e crescimento econômico. No Brasil, entretanto, a tributação exerce um efeito oposto, acentuando as desigualdades. “Nem o imposto de renda, que é o imposto progressivo, quando se junta ao peso do imposto sobre consumo, contribui para reduzir nossa desigualdade. Para chegar à justiça social, temos que fazer um esforço maior que o dos países ricos”, lamentou. “Em países como a Alemanha e a Coreia, o principal foco da economia verde é reduzir a emissão por parte de combustíveis fósseis. No Brasil, mais de 40% das emissões estão vinculadas ao uso da terra, ao desmatamento da Amazônia, mas não só. Um plano de recuperação verde para o Brasil tem que ter a Amazônia como centro. Frear o desmatamento ilegal, mas para tornar isso sustentável, é preciso uma alternativa econômica para a Amazônia que garanta renda e emprego de maneira substantiva”.
Outra parte do plano Biden é a proteção social e o cuidado. “Há uma série de elementos comuns: a necessidade da expansão da proteção social, o Estado assumir responsabilidades que estão na mão das famílias, como integrar o provimento de creches e saúde ao plano, entendendo que isso gera emprego e renda e trabalhando com a infraestrutura humana em oposição à infraestrutura física”, afirmou Laura, que em seguida falou sobre o auxílio emergencial dado pelo governo brasileiro durante a pandemia – e, de forma específica, com os valores praticados no ano de 2020. “Pelo tamanho que teve, pela forma como foi distribuído, que foi bem progressiva, mais de 90% da base da pirâmide recebeu a transferência, fazendo com que a metade mais pobre neutralizasse o choque econômico causado pela Covid. Com o recorte destes dados é possível expandir nossa assistência social e desenhar algo que dê conta dessa massa de pessoas excluídas”.
A transferência de renda no Brasil tem potencial de crescimento econômico – segundo Laura Carvalho, sem o auxílio emergencial, a queda de 4,1% no PIB brasileiro em 2020 teria, pelo menos, o dobro do tamanho. “O auxílio teve esse efeito. Pode haver uma expansão da proteção social, pode haver efeitos multiplicadores muito interessantes numa eventual recuperação”, comentou. “Falta o financiamento disso com a tributação progressiva. Nossa estrutura é ruim, o que significa que temos muita margem para melhorar. Numa proposta bem conservadora, que resolva o principal problema da alta tributação da empresa de um lado e a falta de tributação da renda e do capital, poderíamos gerar uma arrecadação de 2,2% do PIB e financiar uma expansão da proteção social”.
Fábio Graner, repórter do jornal Valor Econômico, fez um comentário ao final do debate. Elogiou o nível dos argumentos e falou sobre a divulgação das contas públicas ocorrida nesta mesma tarde. “É interessante ver como reagiram bem à política keynesiana que o Brasil adotou no ano passado, o receituário keynesiano foi aplicado de maneira clássica e funcionou, a economia voltou mais rapidamente”, comentou Graner. “A questão que eu gostaria de colocar para os palestrantes é como visualizar qual o limite para se fazer este tipo de política. Hoje temos um limite amplamente criticado que é dado pelo teto de gastos”.
Graner citou os estímulos econômicos dados para superar a crise de 2008 – e não retirados em 2010, obrigando a frear a economia em 2011. “É claro que tem limites, mas como identificá-los? Como se mensura isso?”, questionou o jornalista.
André Roncaglia respondeu que vários ajustes são possíveis dentro do sistema de metas de inflação. “Talvez a adoção de núcleos de inflação, ou um horizonte mais extenso, ou uma inflação interanual. Se vai ser viável politicamente ou não, depende de quem comanda ou tem supremacia na condução da política econômica”, ponderou. Para o economista, o plano Biden vai além da visão do mercado, considerando interesses maiores, para o longo prazo da sociedade. Ao falar da solvência da dívida pública, afirmou que é muito diferente olhar a dívida bruta e a dívida líquida. “É preciso ter um arranjo fiscal crível, não pode ser algo tão draconiano como o teto de gastos, porque gera dificuldade de separar o que é gasto produtivo do que é gasto improdutivo”.
Laura, por sua vez, falou sobre ancorar expectativas de endividamento público com um arcabouço fiscal exequível que dê um alvo de qual é a relação dívida/PIB que será buscada. “Uma regra para gasto é algo positivo, não acho que o problema do teto seja o fato de ser uma regra para os gastos. O problema é que a regra tem um caráter pró-cíclico”, criticou. “O teto já colapsou. O que poderia ser uma boa regra? Não sabemos este limite. Mas há uma diferença muito grande entre um país que se endivida em moeda doméstica e em moeda estrangeira”. Por fim, defendeu que é possível ter uma dívida pública sustentável e fazer uma agenda voltada para investimentos em infraestrutura verde.
Ao encerrar o debate, o presidente do Cofecon, Antonio Corrêa de Lacerda, afirmou que os palestrantes colocaram muito bem as limitações, muitas delas autoimpostas, da política econômica brasileira. “Não se trata de importar modelos ou desqualificar qualquer outro a priori, mas sim de criar o nosso próprio espaço, dadas as características brasileiras”, comentou Lacerda. “O teto de gastos não divide gasto corrente e investimento, principalmente em educação, ciência e tecnologia. Eles também lembraram muito bem que embora tenha havido a amenização da crise, ela seria muito maior sem o auxílio emergencial, que chegou a um nível e o efeito econômico foi devido ao Congresso e não ao Executivo. Mas o fato de o Brasil ter uma queda menor que países semelhantes no PIB não é atestado de boa política econômica, porque os demais indicadores nos condenam. O desemprego é o dobro dos demais países, a inflação é o dobro dos emergentes e o Brasil teve proporcionalmente um maior número de vítimas fatais”.
O debate completo pode ser assistido clicando AQUI.