Artigo – Justiça fiscal é possível

Eduardo Fagnani

Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT-IE-UNICAMP) e coordenador da rede Plataforma Política Social (www.plataformapoliticasocial.com). Blog pessoal: Economia do Bem-Estar Social http://fagnani.net/

Artigo publicado originalmente em https://diplomatique.org.br/justica-fiscal-e-possivel/

 

A tributação brasileira está na contramão dos países capitalistas relativamente menos desiguais. É tributação extremamente regressiva, porque incide sobre o consumo, não sobre a renda e a propriedade das classes abastadas. Não é verdade que a nossa carga tributária seja elevada na comparação internacional. Mas é fato que temos a maior carga tributária, em todo o mundo, que incide sobre o consumo (50% do total), é repassada aos preços das mercadorias e captura parcela maior da renda dos pobres, e parcela menor da renda dos ricos.

Esse caráter regressivo fica evidente pela baixa participação da tributação sobre a renda na carga tributária no Brasil (18,3%), na comparação com a média dos 34 países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) (média de 34,1%); pela menor participação da tributação do patrimônio na carga tributária no Brasil (4,4%), na comparação com a OCDE (5,5%); em contrapartida, o caráter regressivo da tributação também fica evidente pela elevada participação dos tributos sobre o consumo, na carga tributária no Brasil (49,7%), muito acima da OCDE (32,4%).

No caso do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), além da baixa ou nula tributação das rendas do capital, a alíquota máxima praticada no Brasil (27,5%) é bem inferior à média da OCDE (43,5%); e sua participação na arrecadação total é quase quatro vezes menor.

Utopia, fabulação e fantasia?

Seria utópico imaginar que tributação sobre a renda total no Brasil possa ser próxima do patamar da Itália e do Japão (em torno de 31% da carga tributária)?  Seria fabulação acreditar que a tributação sobre o patrimônio possa estar em linha com a praticada na Espanha e na Bélgica (em torno de 8% do total)? Seria fantasia irrealizável projetar a tributação sobre o consumo em padrões semelhantes aos que se verificam em Portugal (38,4% do total)?

Não há nenhum impedimento técnico para esses ditos ‘devaneios’

Do ponto de vista técnico, não há nenhuma limitação para que se alcancem essas equivalências. Essa é a conclusão a que chegaram mais de quarenta especialistas que trabalharam por mais de um ano com o intuito de responder a essas indagações, após terem concluído um amplo diagnóstico sobre a quase totalidade dos problemas crônicos da tributação brasileira.[1] No novo estudo que será apresentado ao debate público em outubro de 2018[2] – a cuja síntese os leitores do Le Monde Diplomatique terão acesso em primeira mão – podem afinal afirmar que:

É tecnicamente possível que o Brasil tenha sistema tributário mais justo e alinhado com a experiência dos países mais igualitários, preservando o equilíbrio federativo e o Estado Social inaugurado pela Constituição de 1988”. 

O novo documento não se propõe a apresentar uma proposta acabada de Reforma Tributária. O que ali se fez foi um exercício de redistribuição das bases de incidência da tributação brasileira, pela redução das bases regressivas que incidem sobre o consumo e elevação das bases progressivas que incidem sobre a renda o patrimônio e as transações financeiras. O objetivo é propor, para o debate plural e democrático com a sociedade, um desenho fiscal mais justo que o atual. Registre-se que, a configuração que resultou das simulações realizadas é apenas uma dentre diversas outras possibilidades de se alcançar o mesmo propósito.

A análise foi orientada por três diretrizes: ampliar a progressividade; aproximar os componentes da tributação brasileira da média dos 34 países que compõem a OCDE; e preservar e fortalecer o Estado Social de 1988. Para isso, o diagnóstico foi aprofundado; e estimou-se o impacto financeiro de cada uma das ações propostas; esse esforço de estimativa parece ser o primeiro, na literatura disponível sobre o tema.

Tributação progressiva é possível

As simulações mostram que é possível ampliar a progressividade, dado que se pode quase duplicar o atual patamar de receitas da tributação da renda, patrimônio e transações financeiras, de R$ 472 bilhões para R$ 830 bilhões (incremento de R$ 357 bilhões); e, em contrapartida, pode-se reduzir a tributação sobre bens e serviços e sobre a folha de pagamentos, em R$ 310 bilhões (Figura 1).

[1] A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas / Eduardo Fagnani (organizador). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. 804 p. ISBN: 978-85-62102-27-1/ CDU 336.22. http://plataformapoliticasocial.com.br/a-reforma-tributaria-necessaria/

[2] A Reforma Tributária Necessária – Justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tributação brasileira (DOCUMENTO-SÍNTESE E DOCUMENTO COMPLETO) / EDUARDO FAGNANI (ORGANIZADOR). BRASÍLIA: ANFIP: FENAFISCO: SÃO PAULO: PLATAFORMA POLÍTICA SOCIAL, 2018.

O documento detalha como esses resultados foram apurados para os seguintes componentes: Tributação da Renda da Pessoa Física e da Pessoa Jurídica; Retenções do imposto sobre a renda não alocáveis nas pessoas físicas e jurídicas; Tributação sobre o patrimônio; Tributação das transações financeiras; Tributação sobre bens e serviços; e Tributação sobre a folha de pagamentos.

Ter parâmetros próximos da OCDE é possível

Conclui-se que é possível aproximar a tributação brasileira da média dos 34 países que compõem a OCDE[1]: a tributação da renda pode subir de 5,97% do PIB para 10,27% do PIB, patamar próximo da média da OCDE (11,50% do PIB); a tributação do patrimônio pode passar de 0,84% do PIB para 2,06% do PIB, ficando ligeiramente acima da média da OCDE (1,90% do PIB), mas distante de diversos países, como os EUA (10,3%) e o Reino Unido (12,6%), por exemplo; a tributação do consumo pode declinar de 16,23% do PIB para 12,93% do PIB, um pouco acima da média da OCDE (10,90% do PIB) (Figura 2). 

[1] Para efeitos de comparação, adotou-se o mesmo critério da OCDE, que considera o imposto incidente sobre veículos automotores como tributo que incide sobre o consumo (ao contrário do Brasil que considera o IPVA como tributo sobre o patrimônio).

Fortalecer o Estado Social de 1988 é possível

É tecnicamente exequível preservar as bases de financiamento da Seguridade Social, ampliando-se sua progressividade, mediante a elevação dos tributos que incidem sobre a renda (de 0,75 para 1,92% do PIB) e sobre as transações financeiras (de zero para 0,59% do PIB), e a redução das que gravam o consumo (de 4,55% para 2,71% do PIB) e a folha de pagamentos (de 5,65% para 4,94% do PIB) (Figura 3).

Equilíbrio federativo é possível

Consideradas as simulações, pouco se alteraria a participação dos entes federados na arrecadação total: a União teria leve redução de receitas; e os Estados, o Distrito Federal e os municípios teriam ligeira elevação.

Reduzir a desigualdade da renda é possível

Muito além das propostas de “simplificação”

No debate atual, a Reforma Tributária tem sido tratada como sinônimo de “simplificação” do sistema de impostos. Esse é o núcleo da agenda das corporações empresariais para as quais uma suposta “simplificação” seria único requisito ainda faltante para elevar a eficiência econômica.

Num país desigual como o Brasil, é insuficiente essa suposta de “simplificação”, que destrói o Estado Social (principal instrumento de redução da desigualdade de renda no Brasil) e não enfrenta o problema essencial da injustiça fiscal.

Entende-se que a eficiência econômica é limitada, sobretudo, pela desigualdade social extrema, visão respaldada por atores globais como, por exemplo, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e a Oxfam Internacional. Enfrentar a desigualdade é indispensável e inadiável (o Brasil ocupa a 9ª pior posição em termos de concentração de renda, dentre 189 países).[2]

Simplificar o Sistema Tributário, sem sacrificar o Estado Social

O estudo “simplifica” a tributação e, ao mesmo tempo, preserva o Estado Social e amplia a progressividade. O Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), de competência estadual, a ser implantado por legislação nacional, simplifica sobremaneira o atual quadro “caótico, ultrapassado e oneroso”, caracterizado por uma parafernália de normas: 27 leis estaduais (ICMS) e 5.570 leis municipais (ISS).

Destruir o Estado Social é “destruir”, não é “simplificar”

É fácil “simplificar” tendo-se o Estado Social como variável de ajuste, mas é falsa simplificação, e simplificação insuficiente, porque o Estado Social tem papel central na redução das desigualdades de renda no Brasil.

Para financiar o Estado Social de 1988 é necessário criar tributos de outro tipo (progressivos), em substituição aos que se pretende extinguir (regressivos). Entretanto, caso não se queira criar novos tributos, há alternativas para financiar a Seguridade Social (11,3% do PIB). Por exemplo, revisar as renúncias fiscais e combater a sonegação, que transferem para as classes de mais alta renda aproximadamente 12,8% do PIB.

Novos rumos no debate sobre a Reforma Tributária

O estudo é um convite para que se abram novas frentes para o debate democrático sobre o tema. Esse objetivo já foi parcialmente alcançado, dado que, após a divulgação das primeiras diretrizes deste projeto, em abril de 2018, diversos temas que eram ausentes do debate passaram a fazer parte da agenda econômica de diversos candidatos à presidência da República.

 

NOTAS FINAIS

O novo desenho da tributação brasileira apresenta vantagens para a maioria da população (a nova tabela progressiva do Imposto de renda só aumentaria a tributação para 2,73% dos declarantes, cerca de 750 mil contribuintes, que recebem mais de 40 Salários Mínimos mensais); para a maioria das empresas do Simples (isenção ou não incidência de tributos sobre a renda); para as médias empresas (redução do imposto de renda e dos tributos cumulativos que incidem sobre o consumo); para as médias e as grandes empresas (redução dos tributos que incidem sobre a folha de pagamentos); e para todos os brasileiros e empresários (redução da tributação sobre o consumo, o que mitiga a complexidade e a cumulatividade dos tributos, melhora a situação financeira das empresas, grava menos as classes de média e baixa renda,  reduz a desigualdade e eleva a eficiência econômica).

Além disso, o estudo alerta para a necessidade de se recuperar parte dos 12,8% do PIB que são transferidos para as classes mais abastadas pela via das isenções fiscais e da sonegação, o que possibilitaria reduzir ainda mais a tributação sobre o consumo ou evitar a criação de novas fontes de financiamento da Seguridade Social, mantendo-se inalterada a carga tributária.

Conclui-se que não há limitação técnica para ampliar a progressividade do sistema tributário. O desafio a ser superado é de natureza política.

A questão inescapável, que tem de orientar esse debate é: “Qual modelo de Estado a sociedade brasileira está disposta a seguir: o modelo dos países mais igualitários, que combinaram a tributação progressiva com o Estado de Bem-estar Social? Ou o modelo dos países que fizeram as reformas liberalizantes impostas pelo “mercado”, nos quais o Estado perdeu até mesmo as condições para cumprir suas funções mais elementares?”

[1] Consultar: SILVEIRA, F. G. Equidade fiscal: impactos distributivos da tributação e do gasto social. Brasília: ESAF; Tesouro Nacional, 2012 (XVII Prêmio Tesouro Nacional – 2012).

[2] Brasil mantém tendência de avanço no desenvolvimento humano, mas desigualdades persistem. ONU/PNUD. 2018.   http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2018/brasil-mantem-tendencia-de-avanco-no-desenvolvimento-humano–mas.html