Artigo – A lenda dos dois lobos e a disputa ideológica

Por Fernando de Aquino – Doutor em Economia pela UnB, conselheiro do Cofecon e membro da Abed.

A lenda cherokee dos dois lobos, geralmente utilizada com propósitos de autoajuda, pode ajudar também no entendimento da disputa ideológica contemporânea. Conta a lenda que um jovem índio, sentindo-se injustiçado na aldeia, foi se aconselhar com o avô.

O velho índio explicou: “Todos temos dentro de nós dois lobos, um carrega todos os sentimentos ruins que podem existir no ser humano, como ódio, raiva, crueldade, inveja, egoísmo, ressentimento, falsidade, enquanto o outro, todos os sentimentos bons, como amor, serenidade, humanidade, empatia, sensatez, gratidão, sinceridade. Às vezes, é difícil conviver com estes dois lobos dentro de mim, pois ambos tentam dominar meu espírito.”

O neto pensou por um minuto e perguntou ao avô: “Qual dos lobos vence?”

O velho cherokee respondeu simplesmente: “Aquele que você alimentar.”

A lenda supõe que os valores e motivações são moldáveis, mas apenas pela própria pessoa. Certamente, a alimentação desses lobos interiores não estaria acessível apenas aos seus donos. Tudo indica que seria até mais propensa a influências exteriores. Por certo, essa alegoria dos dois lobos não é capaz de abranger todos os determinantes do comportamento dos indivíduos, mas pode ser útil para descrever procedimentos voltados a conquista de corações e mentes. Nesse contexto, o lobo progressista das pessoas precisa ser alimentado com valores e motivações compatíveis com uma sociedade mais igualitária, justa e livre, enquanto os conservadores alimentariam o lobo da manutenção das condições vigentes, por propósitos como privilégios, medos ou vontade divina.

Os progressistas seguem tentando conscientizar a todos das injustiças e opressão, incluindo pautas identitárias, relativas a condições específicas de grupos, como mulheres, negros e LGBTs. Contudo, a forma como vêm alimentando o lobo está requerendo ajustes. Por um lado, em que pese a urgência e relevância de se combater a discriminação e violência “adicionais’ a que estão submetidos grupos como os mencionados, não se deve perder de vista o problema de fundo, mais geral, envolvendo as condições das classes sociais.

Caso contrário, o ativismo se desencaminhará para embates entre homens e mulheres, negros e brancos, homossexuais e heterossexuais, fomentando o aumento da hostilidade entre os indivíduos, sem grande potencial de substantiva melhoria na qualidade de vida de todos. Nesse sentido, emblemático tem sido um cisma no movimento feminista, chamado de “mulherismo”, que denuncia a exploração de classe entre as mulheres e proclama uma afinidade preferencial com o homem negro, passando do ativismo de gênero para o de etnia e relevando o principal, que seria o de classe social. Mesmo se esse ativismo, descolado da questão mais geral, pudesse levar à igualdade de direitos para os grupos mais desfavorecidos, isso significaria equiparar todos ao homem, branco e heterossexual, o qual, estando em classe subalterna, é altamente injustiçado e oprimido.

Por outro lado, é preciso elaborar estratégias mais efetivas para avançar na disputa ideológica com os setores conservadores, que têm a mídia corporativa, os tecnocratas e as religiões de massa ao seu lado.  Obviamente, os que querem conservar a situação social atual, em sua grande maioria pretende reverter as conquistas que vêm sendo obtidas desde a constituição de 1988, não cultivando valores igualitários. Tendem a preferir o chamado darwinismo social ou a encarar as desigualdades como uma lei da natureza ou resultante da vontade divina.

Também pelo prazer de se sentirem superiores aos negros, ou aos que não são crentes, ou aos homossexuais, ou às mulheres, ou aos nordestinos, querem “essa gente” mantida numa condição inferior. As modestas conquistas são consideradas, pelos conservadores, perda de privilégios, mesmo pequenos, que percebem como direitos, ameaça de aprofundamento e medo das dificuldades de conservar seu “estilo de vida”. O ressentimento gerado leva ao apoio a condutas autoritárias e violentas, estatais e paraestatais, muito além de um “mal necessário”, mas como um justiçamento aos que estão usufruindo do que não merecem.

Esse conservadorismo da estrutura social Casa Grande-Senzala também alcança grande parte dos que estariam dentro da senzala, por terem sido convencidos de que lá estão por culpa de governos corruptos que só beneficiam aos seus em detrimento deles. Termos como “PT”, “Lula”, “Esquerda”, “Comunismo”, viraram gatilhos para o ódio pelas injustiças que sofrem, acreditando serem causadas justamente pelos que fizeram mais políticas para mitigá-las.

Não se trata de teoria da conspiração, mas de uma convergência de interesses entre mídia corporativa, setores empresariais e lideranças políticas, que geram montanhas de Fake News e narrativas manipuladas. O recorrente tema da corrupção, que já legitimou diversos golpes e tentativas, é trabalhado de modo mais amplo. Corrupção será o que gerar ressentimento e indignação em cada um.  Para muitos, entre donos e agregados da Casa Grande e os que vivem na senzala, transgressões de cunho financeiro, como propinas, favorecimentos, sonegação, não causam tanta indignação quanto costumes pecaminosos, de natureza sexual ou de insubmissão. Neste campo, lideranças religiosas conservadoras têm exercido um ativismo eficiente.

Continua inacessível a identificação do que seria, no comportamento humano, determinado pela natureza, experiências individuais, relações sociais e disputa ideológica. Mesmo com todas as dificuldades de se enfrentar os conservadores, também é inaceitável os meios e os fins como os da Revolução Cultural maoísta. Valores e práticas democráticas não podem ser retórica ou instrumentos, mas condições inalienáveis, as quais deve-se radicalizar no sentido de identificá-las com desigualdades mínimas de oportunidades e resultados. Um alento para os que cultivam esses ideais de justiça social é que algumas sociedades conseguiram alcançar elevados padrões.